sexta-feira, 15 de outubro de 2010

AINDA TÊM OS NOSSOS ESTUDANTES

RAZÕES DE QUEIXA?...



«Daisy vai à escola por um cabo, a única ligação entre o local onde vive, a 60 km de Bogotá, e o mundo exterior.

Enquanto Daisy Mora se prepara para descer como um foguete para chegar à escola, o seu irmão mais novo, Jamid, olha para ela, inquieto. Com uma voz melancólica, ela tranquiliza o rapazito de cinco anos cantando a canção colombiana do Vaquero, o pastor que suspira pela sua amada. Depois, ela prende-se à roldana ferrugenta que mais faz lembrar um gancho do talho.
Como um caracol na sua concha, Jamid enrola-se no saco de juta. Daisy amarra a carga de cerca de 14 quilos ao gancho da corda da roldana, mordendo os lábios com grande ansiedade. "Finalmente", murmura, enquanto o suor lhe escorre pela testa. Agora, ata as extremidades de uma corda de cânhamo a dois ganchos que prende ao cubo da roda. Cria deste modo uma espécie de baloiço de ganchos onde se senta.



As duas crianças mergulham ao longo do cabo de aço para as profundezas do vale verde-escuro do Rio Negro. Enquanto a roldana chispa e o metal chia ritmadamente, Daisy bate várias vezes na cavilha de aço da roldana para que não se solte. Como o andamento de um combóio de mercadorias, as crianças atravessam o nevoeiro húmido. 360 metros por baixo deles, o rio Negro ruge. Precipitam-se na direcção da encosta da outra margem e, durante segundos, o nevoeiro permite uma visão da floresta tropical, do edifício da escola, do rio e, de novo, da floresta.
São necessários apenas 60 segundos para percorrer os 800 metros do caminho no cabo. A protecção de amortecimento, um pneu velho de camião, parece cada vez maior. Daisy agarra o ramo em forma de forquilha que lhe serve de travão. Faz pressão com o ramo ritmicamente contra o cabo de aço até que o metal chispa, e se solta um cheiro a madeira queimada. Os seus pequenos dedos apertam a madeira contra o cabo. O resto do balanço é absorvido pelo pneu. "Uff!", diz Daisy, "conseguimos outra vez".
Neste vale é o pai que entrega a roldana de ferro aos filhos e lhes explica como chegar à escola com este veículo. A primeira viagem de cada criança é uma espécie de rito de iniciação em que toda a família participa. Enquanto o pai mostra como o travão tem de ser pressionado contra o cabo, a mãe faz o que pode para controlar um ataque de histeria benzendo-se com veemência. E quando a viagem de estreia acaba em bem, festejam e finalmente a mãe pode chorar de alegria e de alívio.


Doze cabos de aço ligam as vertentes de ambos os lados do rio. Para as 15 famílias que aqui vivem em cabanas isoladas, a cerca de 60 kms para sudeste de Bogotá, estes cabos são a única forma de contacto com o mundo exterior.
O explorador alemão Alexander von Humboldt relatou, em 1804, que os nativos utilizavam um sistema de cordas. As primeiras cordas a que os índios se agarraram eram estendidas através de vales e pequenos desfiladeiros.
Com o início da industrialização, as cordas de cânhamo foram substituídas por cabos de aço. Ao longo destes cabos podia ser transportada fácil e rapidamente a madeira, a matéria-prima de que mais necessitavam. Quando a madeira das regiões de acesso fácil já tinha sido totalmente cortada, novos cabos eram instalados em zonas mais remotas da floresta tropical. Quando se atingiu o clímax da exploração florestal nos anos 60, o corte de madeiras passou a ser proibido por lei.
Os cabos sobreviveram à exploração florestal. Os agricultores descobriram que as clareiras feitas nas zonas arborizadas podiam ser utilizadas para a agricultura e pastoreio. O cabo de aço, tendo servido durante dois séculos para o transporte de madeiras, tornava-se agora essencial para o acesso a regiões inacessíveis. Para os colonos, os cabos são o único sistema de transporte de que dispõem. Aquilo que não podem produzir, os homens e as mulheres vão comprar à aldeia de Guajabetal, a cerca de 10 Kms de distância. Com a ajuda dos cabos, a mandioca, o milho e o gado são transportados para o mercado, levando de volta materiais de construção para as cabanas.



Os pimparos, pássaros de penas amarelas, soltam gritos agudos no meio da floresta tropical. Um ribeiro corre sobre as pedras avermelhadas do caminho íngreme que tem de ser desbravado todos os meses a golpes de faca pelos homens e coberto com novas pedras. Enormes árvores Arranyanes com as suas flores vermelhas crescem ao longo do caminho. Daisy e Jamid olham para o outro lado da ravina. Jamid pergunta à irmã quando é que terão idade suficiente para utilizarem o cabo sozinhos. "Para o ano", responde ela. Depois chegam à zona da encosta onde pastam as duas vacas da família.

A cabana da família Mora é feita de tábuas de madeira. Foi o próprio Guillermo Mora, um homem forte de bigode e olhos sorridentes castanhos-escuros, quem a construíu. Diz que a construção é 'arejada': a chuva ao bater nas tábuas abriu-lhes algumas fendas do tamanho de uma mão por onde o vento sopra. A dona da casa, Nidia Cifuentes, pensa que é uma coisa útil. Assim pode sempre ver os filhos lá fora, além de que o fumo permanente da lareira tem por onde escapar quando ela está a cozinhar arroz e feijão. Guillermo e a mulher partilham a única cama com os 4 fihos mais pequenos, enquanto Daisy e Jamid dormem juntos num colchão no chão.
À noite, Guillermo acende os candeeiros de petróleo. Ao pôr-do-sol senta-se no degrau da porta do corredor coberto com algumas tábuas que separam as duas únicas divisões, a cozinha e o quarto. Fumando um cigarro, tenta esquecer a dureza de um trabalho cujo rendimento mal dá para alimentar a família. Colher as bananas, fixar os feijoeiros, cavar a terra, deitar abaixo árvores às escondidas, espalhar o fertilizante e os pesticidas, cuidar dos dois animais - muito trabalho para um homem só. ...
Nídia Cifuentes inicia os preparativos para o festival serrano. ... Ao meio-dia todas as famílias se juntam. O alarido das crianças a brincar mistura-se com as canções do grupo musical Los Autênticos del Campo. Hoje vai ser inaugurado o novo edifício da Escola. ... "Os nossos filhos sobreviverão neste mundo com a ajuda do cabo, até que o Governo construa a ponte."»



Reportagem de Christoph Otto (texto e fotografias)
Traduzido por Aida Macedo
Expresso - REVISTA - 22 de Setembro de 2001