quinta-feira, 31 de maio de 2012

          TABACO
(Dia Mundial Sem Tabaco)




Estou certo de que o leitor está suficientemente informado para saber que o consumo de cigarros está, indiscutivelmente, incluído entre os três principais factores de risco da doença coronária.* O eco de múltiplas e sucessivas campanhas contra os malefícios do tabaco já deve ter chegado até si, de forma a permitir-lhe saber também que os riscos que mais têm sido postos em destaque para os fumadores são a bronquite crónica e o cancro do pulmão, não obstante mais de metade do excesso de mortes nos fumadores ser, contudo, devida a doenças cardiovasculares.
Se, ainda assim, me confessa que fuma muito e sobretudo se é jovem, fico mais preocupado. Chamo-lhe a atenção para o facto de que os indivíduos que fumam mais de 20 cigarros por dia e os que começam a fumar antes dos 20 anos, têm duas vezes mais probabilidades de morrer por doenças do coração do que os não fumadores.

Não vou ao ponto de dizer, como Fernando de Pádua, que fumar é um vício maricas, mas o que é certo é que, actualmente, as mulheres fumam mais do que os homens! Esquecem, contudo, que o grande consumo de cigarros aumenta o risco de morte súbita e que, além disso, as mulheres que fumam e usam 'pílula' correm ainda um risco maior, que pode ser cinco vezes mais frequente.

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE TEMPERANÇA/MOVIMENTO TABACO OU SAÚDE


Tem sido sugerido que seja coincidente e não causal a grande associação entre o fumo do cigarro e as doenças das coronárias.* É que aqueles que têm tendência para sofrer de doença coronária são também o tipo de pessoa que constitucionalmente têm mais tendência para fumar. Contudo a 'hipótese constitucional' não pode explicar facilmente o menor risco de doença coronária nos ex-fumadores. É indiscutível que os factores constitucionais e familiares afectam o risco de morte por doenças do coração, mas não se provou ainda que qualquer desses factores explique a associação entre o tabagismo e a doença coronária.

Considero no entanto ser tão perigoso o vício de fumar, que sou um grande fumador completamente regenerado, até por saber que os perigos do tabaco podem surgir, ainda que fumando cigarros sem nicotina, talvez pelo efeito de outro constituinte do fumo do tabaco, o monóxido de carbono.

Embora o risco de doença coronária nos fumadores de cachimbo e de charuto pareça ser só ligeiramente maior do que nos não fumadores, é possível que a mudança do cigarro para o cachimbo, charuto ou cigarrilha não resulte na correspondente redução do risco.

Se o quadro que mostra a relação entre as doenças cardíacas e o tabagismo está sobrecarregado de pinceladas de tons cinzentos, o painel que põe em evidência a estreita ligação entre consumo de cigarros e trombose cerebral ou doença vascular periférica, está totalmente pintado com tinta negra, como que representando o cartão de visita de uma agência funerária. De facto temos que considerar que há uma associação ainda mais estreita entre o fumo e o quadro de entorpecimento, debilidade e rigidez dolorosa das pernas, que surge depois de algum tempo de marcha, e que desaparece com o repouso, a que se dá o nome de claudicação intermitente.

Ficamos então com a ideia de que o perigo do tabagismo é maior para a doença vascular periférica, seguido de morte súbita e enfarte do miocárdio, principalmente em homens jovens que fumam muito.


A um meu amigo, jovem médico, perfeitamente conhecedor destas verdades e que, inconscientemente, continuava durante o almoço a conspurcar o meu bife com o fumo do seu cigarro, dediquei um dia esta quadra:
                                    A não ser que Deus te valha,
                                    Se não deixares de fumar,
                                    Tens no cigarro a mortalha,
                                    Em que irás a enterrar.

Os principais constituintes do fumo do tabaco, que se pensa afectarem o coração, são o monóxido de carbono e a nicotina; o primeiro leva a níveis de carboxi-hemoglobina da ordem dos 10 a 15%, reduzindo o total de oxigénio disponível para o músculo cardíaco (miocárdio), e a segunda estimula a secreção de catecolaminas, que são hormonas da glândula suprarrenal, aumentando assim o trabalho do coração. Tanto um como outro aceleram a aterosclerose.*

Fumar 20 cigarros por dia duplica aproximadamente o risco de ter um ataque do coração, e quando o fumador tem o colesterol ou a tensão arterial elevados, o risco é consideravelmente aumentado.

A maioria dos adolescentes que começam a fumar vem a tornar-se adultos fumadores e a dependência é tão grande que apenas 15% dos fumadores param antes dos 60 anos de idade.

Parece ser muito mais fácil não começar a fumar do que parar de o fazer. Aconselhe os seus filhos a não experimentar... Se não conseguir, faça com que deixem de fumar atempadamente, pois parece que se verifica uma redução do risco de ocorrência de enfarte do miocárdio ou de morte por doença coronária, nos que param de fumar. Mesmo nos homens de meia-idade, que durante muitos anos foram grandes fumadores, parece reduzir-se o risco de um acidente coronário, quando deixam de fumar.*

Perante estas negras hipóteses, decida-se! Deite fora o último maço de cigarros que comprou... Assim fazendo, liberta-se da tosse e de infecções pulmonares, e pode melhorar da sua angina de peito e, se tem claudicação intermitente, terá menos probabilidades de vir a precisar de uma amputação.


Não resisto a introduzir uma jocosa forma de publicidade anti-tabaco que vi afixada na parede dum apagado Café algures para os lados de Lamego:
                                    "Fumador: a fumaça do seu cigarro é o resíduo do seu prazer. Porém, ela polui o ar, o meu cabelo, a minha roupa e os meus pulmões. Tudo isto sem o meu consentimento. Acontece que eu também tenho um prazer: gosto de tomar umas cervejinhas. O resíduo do meu prazer é a urina. Você ficaria aborrecido se eu fizesse xixi na sua cabeça?"

Como médico, aconselho-o. Como amigo, lamento que por vezes seja alvo duma certa marginalização, tanto mais acérrima quanto liderada pelos fumadores regenerados. É que a estes é mais doloroso ser fumador passivo e nem o artº 2º do Dec. Lei Nº 226/83, que não permite fumar em determinados locais, os protege!

Para si que é fumador, e continua a ler o jornal de cigarro na mão, lembro-lhe uma vez mais:

- Os fumadores morrem duas vezes mais do que os não fumadores, antes dos 65 anos.
- O tabagismo é a causa conhecida mais importante de cancro das vias respiratórias.
- É factor de risco "major" de doença coronária, acidente vascular cerebral, doença vascular periférica e aneurismas, particularmente em população com valores médios de colesterol total elevados.

Se ficou "ligeiramente" assustado, reveja alguns conselhos:

- Chame a si toda a força de vontade de que é capaz e suspenda o consumo de cigarros.
- Se não é capaz de deixar totalmente de fumar, não inale o fumo e fume só cigarros com filtro e menos de 5 por dia.
- Um tranquilizante pode ajudá-lo durante o período de desabituação.
- Tente um medicamento anti-tabaco.

É evidente que não é fácil irradicar um hábito tão aceite e arreigado na sociedade de hoje. No entanto algumas normas devem começar ou continuar a ser postas em prática, porque delas poderão depender a saúde e a sobrevivência dos incautos que arrastam, constantemente, uma nuvenzinha de fumo atrás de si. Poderão ser:

- Aumentos progressivos dos impostos sobre o tabaco.
- Supressão da publicidade da indústria do tabaco.
- Apoio a programas públicos de Educação para a Saúde.
- Proibição rigorosa de fumar em Hospitais, Escolas, Casas de Espectáculos, Restaurantes.
- Encorajar actividades alternativas para a indústria do tabaco.
- Retirar subsídios para a produção do tabaco nos países produtores.
- Influenciar a criação de uma política activa contra o tabaco a nível nacional.
- Informar sistematicamente o público, através dos meios de comunicação social, dos perigos do tabagismo para a saúde, dando aos fumadores um plano bem definido para conseguir parar por completo e um apoio continuado durante o período de desabituação.
- Avisar particularmente as crianças filhas de pais que já tiveram um acidente cardíaco.
- Lembrar, antes de tudo, que não fumar é que deve ser encarado como um comportamento normal e não o contrário.

O QUE ACABÁMOS DE REFERIR NÃO SERÁ SUFICIENTE PARA DIZER NÃO!... AO TABAGISMO?

                                    Se não és não queiras ser,
                                    Nem por exibicionismo,
                                    Se não queres adoecer,
                                    Diz que não, ao tabagismo!

                                    Se ainda andas por cá,
                                    E tens gosto de viver,
                                    Se és fumador, pára já,
                                    Se não és, não queiras ser.

                                    Protege o teu coração,
                                    E deixa-te de lirismo,
                                    Não te armes em fumão,
                                    Nem por exibicionismo.

                                    Não vais dar parte de fraco,
                                    Se não te agrada morrer;
                                    Deixa o fumo do tabaco,
                                    Se não queres adoecer.

                                    Se os teus pulmões se consomem,
                                    Deixa lá o masoquismo;
                                    Mostra que és Mulher ou Homem,

                                    DIZ QUE NÃO, AO TABAGISMO!

Políbio Serra e Silva, Professor Catedrático de Endocrinologia, Doenças Metabólicas e Nutrição
da Faculdade de Medicina de Coimbra in PREVENÇÃO VASCULAR



*Leia sobre Doença Coronária e Aterosclerose em Leituras para a Vida, 24.09.2011 - Links 1R

terça-feira, 15 de maio de 2012

Aprendendo Com Os Problemas dos Outros... PARA TER UMA FAMÍLIA MAIS FELIZ

À beira dos 50 anos, ela olha para o passado, recorda o casamento depois de breve namoro, e só tem motivos para sofrimento e lágrimas.
Aparentemente, sob todos os aspectos, eles, marido e mulher, são muito diferentes.
Em nada combinam: a começar pela imagem que ele tradicionalmente possui da mulher: 'um objecto ao serviço do seu exclusivo capricho'. Ciúmes, correspondência violada, grosseria, discussão, ameaças, desrespeito. Um inferno. Na vizinhança ninguém percebe. Na igreja que frequentam ninguém sabe.
Qual a solução do Dr. Belisário Marques para
Esposa Desesperada?

Dr Belisário

Preciso desesperadamente de falar com alguém e há pouco estava a ler a revista Mocidade quando pensei em lhe escrever. São coisas que não se falam com ninguém, ou pelo menos eu não sinto coragem de falar, mas quem sabe com alguém que é estranho e está longe, seja mais fácil. Peço licença para tratá-lo por 'você', por ser também mais fácil, e peço licença para derramar as minhas palavras assim como são, o joio e o trigo, esperando encontrar em você um amigo com capacidade para passar tudo numa peneira, deitar fora o que não presta e esquecer. Mas que tenha um coração bastante grande e caridoso para me ajudar na medida do possível.

É muito difícil para mim expressar-me. Tenho 48 anos, meu marido 52, um menino de 12 anos e 3 filhas adultas, já fora de casa. E uma netinha.
Parece que não falta nada para sermos felizes, mas assim não acontece. É quase um inferno a vida em casa. Você entende que a gente vai ficando com o sistema nervoso confuso, esgotado, e já não sabe o que é certo ou errado, parece que a consciência fica doente, sem discernimento. Gira, gira e chega ao mesmo ponto. É assim que eu estou, e isto é horrível.

Enjoei-me completamente do meu marido. Há umas 3 semanas que passei a dormir separada. Ele chama-me de diabo e tudo o mais. Creio que a solução mais certa seria se eu morresse, mas isso pertence a Deus decidir. A alegria de viver para mim acabou quando me casei, mas a gente vai lutando.
Tenho tentado de tudo, e ao pensar em escrever a você, comecei a voltar pelo caminho percorrido. Não pense que sinto que seja uma questão de idade, menopausa. Pode estar concorrendo mas essa não é a causa. Desde moça que nunca fui muito ardente, ou muito forte, mas creio que sou mais ou menos normal, se bem que educada nos moldes daquele tempo onde o recato estava presente.
Para o meu marido, o sexo sempre foi a coisa principal na vida. Ele sempre dizia que se um dia deixasse de ser homem, se mataria pois isto é a única coisa que faz um homem feliz.
Eu já entendo de uma maneira diferente: é um ângulo da vida, como os outros; nem todos funcionam mas podem ser substituídos ou preenchidos por tantas coisas! Acho que o sexo deve ser algo maravilhoso para viver a dois, compartilhado, resultado de uma compreensão, comunicação ou sei lá o quê, mesmo uma atracção, como também entendo que o homem possa ter uma natureza mais forte, mais necessidade, etc.

Bem, mas voltando atrás, chego ao dia do nosso casamento. Você me permite e me perdoa as expressões que vou usar ... ele disse-me que não tinha a certeza se eu era virgem... Fiquei triste porque nem sequer tivera outro namorado nem contacto de espécie alguma. Quando chegámos a casa ele me disse: "Olha, agora você é casada e eu sou suficiente na sua vida. Não gosto e não quero saber de amizades, visitas ou parentes." Quando saímos para os primeiros passeios ele voltou amuado e não falou por quinze dias. Depois fiquei a saber que eu "tinha olhado para o cobrador do autocarro". E isso aconteceu durante toda a vida, ciúmes dos cunhados, de todo o mundo... do namorado da filha nem se fala, ele "tinha a certeza"... Foi vexame contínuo. Mas sempre achei que casamento é para toda a vida e fui suportando. Sem amigos, solidão e tristeza.

Mas devia ter-lhe falado, antes, nas qualidades. Ele é trabalhador, ajudava a cuidar das crianças à noite e nas doenças. Nós nos conhecemos em S. Paulo e nos correspondemos. Não houve conhecimento bastante, creio que isso foi uma coisa negativa...
Nunca fomos amigos. Nunca conseguimos conversar, os nossos mundos são tão diferentes! Ele só fala em sexo. Sempre lhe supliquei para não me repetir as piadas sujas, imundícies que os homens praticam com mulheres. Explicava-lhe que isto me prejudicava muito. É como se a mulher fosse um objecto de diversão para o homem e não um ser humano com dignidade. Isto foi-me fazendo criar nojo dele e até de mim mesma como mulher. Aliás a conversa dele sempre foi rebaixando a Mulher. Muitas noites chorei com vontade de conversar com alguém coisas comuns da vida, ser uma pessoa e não um objecto.

Tudo foi piorando e cheguei a um ponto em que o meu corpo tem calafrios e não suporto nem o cheiro dele, mas até agora nunca deixei de servi-lo apesar de tudo. Só que agora já não dá mais. Se tiver de perder o Céu, que é a única coisa porque tenho lutado durante a vida toda, perderei!...

Tenho muita tristeza e pena dele. O seu mundo ruiu. Agora que se aposentou, fica em casa vendo novelas, confere os modelos desportivos da Lotus, e queria gozar a vida. Tudo o mais acabou. Nunca conseguimos dialogar. Ultimamente temos algumas discussões aos gritos onde ele me diz: Mulher é (...), perdoe-me a expressão. Tenho os meus direitos e necessidades, minha natureza, etc.
Agora pergunto-lhe: seria justo da parte de Deus que a mulher viva oprimida feita capacho para o homem?! Não tenho muita instrução, mas penso que ele é 'machista' - sempre diz que a mulher precisa de ser ignorante para o homem dominá-la. Puxa, o que sou afinal?!
Nestes últimos anos tenho lido muito e mantido correspondência. Isso me ajudou bastante, mas agora ele abre-a, viola a minha correspondência. Se leio bons livros diz que quero virar santa; se visito um doente diz que faço caridade aos outros e não a ele. E os ataques à minha moral continuam.
Agora sou avó, é uma coisa maravilhosa, mas exijo-lhe um pouco mais de respeito. Chega de calúnias e ciúmes idiotas. Creio que a desconfiança é uma peste incurável. A pessoa autocrata destrói os outros e a si mesma.

Dr. Belisário, não imagina o meu desespero: detestar o homem que eu amo e respeito como pai dos meus filhos. Que fazer? A nossa casa já era triste, com ele sempre de mau humor, acusando todo o mundo ou se fazendo de vítima, agora então... Mas separar-me seria horrível! Quase ninguém nota nada - na igreja e na vizinhança é tudo normal e ele é simpático. Às vezes bate no ombro das pessoas, sorri, e depois diz-me em casa: "Não quero saber desse fulano aqui porque é um chato".

E aqui está a minha confusão: estarei perdida para o meu Deus? Obrigou Deus a mulher a servir o homem por toda a vida, sob pena de perder o Céu?! Onde na Bíblia diz isso?! Ele diz que a minha religião é falsa, e algumas vezes quando leio na Bíblia sobre ter misericórdia, perdoar sempre, etc, fico perplexa. Como ser humano, como filha de Deus, desejo-lhe todo o bem, procuro fazer tudo o que me é possível, mas o meu corpo quer paz, aliás, corpo e mente agem juntos. Creio que o meu mal seja mais psicológico. Procurei tratar-me com médicos de confiança mas nada adiantou.

Ele escreveu a um Conselheiro de Famílias e depois esfregou-me a resposta no nariz, onde dizia que a esposa não se pode negar de maneira alguma, etc, etc. Será que Deus tem mandado certas pessoas darem conselhos quanto à vida íntima dos outros?!

Sabe, quando uma mulher aparentemente normal se suicida e ninguém sabe porquê, eu fico imaginando que sei...

Nesta vida existem coisas e situações quase insolúveis, e creio que dar conselhos específicos é uma grande responsabilidade. É por esse motivo que recorri a você para este desabafo. Você ajuda a clarear as coisas para que as soluções apareçam, e creio que é um dom precioso, e deve mesmo ser repartido, porque é raro e há muita falta pelo mundo de um ouvido para ouvir e uma palavra amiga.
Se eu tivesse bases, gostaria de estudar e ser mais útil aos outros. Mesmo assim sempre procurei ajudar as pessoas com mensagens, pensamentos - sempre de longe porque de perto não dá. Eu fui criada num lar onde a hospitalidade e a franqueza, o amor e a amizade eram a nota tónica. É tão gostoso amar, dar e receber sem interesse. Os meus velhinhos estão lá na sua casa - de longe vêm pessoas vê-los e amá-los e são tão felizes!

Mas que faço na vida, se precisar de me sustentar? Tenho entregue a Deus as nossas vidas e a sua solução. Tenho medo que ele se mate, se não conseguir uma mulher. Aliás há anos que ele anda atrás delas mas sempre no lugar errado. Procura mulheres casadas e até amigas, mas elas fazem que não entendem... Ele não se preocupa que as pessoas percam o Céu, contanto que o corpo dele seja satisfeito!
Por favor, se você conseguir ler tudo isto, eu agradeço-lhe o sacrifício. Se me puder ajudar será bom, mas não me recomende conversar com guias espirituais que não quero. Já não se fazem mais lideres espirituais como antigamente.

Ah! Se puder, na sua coluna da revista Mocidade, algum dia esclarecer aos moços que Mulher não é sinónimo de sexo, eu creio que seria útil...
Esposa Desesperada

             Prezada Senhora

Pensei muito na sua carta. Fiquei na dúvida se a publicaria ou não... Cheguei à conclusão que sim.
Não vou dizer muito. A carta fala por si mesma. Creio que ela revela muitas lições, indica as muitas preocupações que se devem ter ao escolher um companheiro para toda a vida. Levanta uma série de tópicos importantes na vida do ser humano. É o testemunho de uma vida e um grito de desespero.
Gostaria, entretanto, de dizer algumas palavras:

Pertencer a uma organização religiosa, qualquer que ela seja, não é indício de religiosidade. O ser humano, enquanto estiver neste mundo é falível, fraco, limitado e cheio de imperfeições. E cabe a cada um de nós procurar viver da melhor maneira possível sem fazer os outros sofrerem. Agora quando o erro, desejos, vontades dos outros violam, violentam, ultrajam o nosso próprio ser, precisamos de fazer algo.

Outra coisa: morrer não é solução para coisa alguma. Nem morrer em certas guerras resolve os problemas. Tirar a vida, resolve menos ainda. Creio piamente que todos temos uma vocação, um chamado, uma missão para cumprir enquanto velejamos pelo mar da vida. E nenhuma outra pessoa pode cumpri-la em nosso lugar. Por isso valorizo muito a vida. Creio na vida! Amo a vida, apesar de saber que a qualquer momento ela poderá escapar-me das mãos.

Um ponto que me despertou a atenção foi a falta de informação do seu marido por ocasião do casamento. A insensibilidade com que a tratou, como lidou com a situação. Infelizmente é uma atitude muito comum ainda hoje.
Por falar em sexo, não creio que pessoa alguma seja obrigada a praticar sexo sem vontade. Aliás quanto eu entenda é considerado crime de estupramento. Não creio em sexo para provar nada. Não creio em sexo para satisfazer um, contra a vontade do outro. Sexo é o resultado de um bom relacionamento, um bom entrosamento. É o coroamento de um relacionamento gostoso. Aliás, de acordo com a Bíblia, ele está associado ao companheirismo entre o homem e a mulher, instituído no Céu. Sexo à força, por obrigação, eu não conheço nem creio ser o tipo desejado e recomendado por Deus.

Agora, há um lado difícil. À medida que a gente vai entrando nos anos, certas características vão ficando mais definidas. Quando se chega à menopausa e à reforma, surge uma crise muito grande na vida. Talvez fosse bom esperar que passe essa crise. É uma fase muito difícil para os dois. Não creio que isto conforte você, mas alguns casais que conseguem transpor esta crise depois se aceitam melhor e acabam tendo um fim de vida mais tranquilo. Mas para isso acontecer precisam de discutir, brigar - sem se agredir fisicamente - conversar muito. Fazer uma verdadeira limpeza por dentro de todas as mágoas acumuladas através das primaveras e outonos da vida. Enquanto há raiva, há esperança, porque em geral temos raiva de quem amamos. O pior é a indiferença, a apatia e a passividade sentimental.

Disse para você que ia deixar a sua carta falar sozinha e aqui estou, com a cabeça cheia de coisas para escrever. Não vou fazê-lo. Vou deixar muitas das suas perguntas no ar. Talvez porque para algumas eu também não tenha resposta e é justamente aí que está o valor delas. Deixar que cada um pense!
Coragem! Sucesso na sua vida. A resposta virá... sempre há uma porta para ser aberta. É só continuar.

Dr. Belisário Marques, Psicólogo  -  Revista  Mocidade,  Casa Publicadora Brasileira

"O amor não é o resultado de uma satisfação sexual adequada; pelo contrário, a felicidade sexual é o resultado do amor."
Erich Fromm

domingo, 6 de maio de 2012

SACRIFÍCIOS das MÃES

- de Sangue e do Coração -


A LONGA JORNADA

Enquanto me dirigia para Cheng Tsuen, resolvi que eu mesma levaria as crianças para Xensi. Era impossível mantê-las na área de combate por mais tempo, e por essa altura já se podia perceber que alguma coisa devia ter acontecido ao Sr. Lu.
Demorou muito para eu ficar a saber que ele tinha conseguido passar a salvo com o grupo de crianças, e estava a voltar quando foi preso e levado para ser julgado por um tribunal militar. Como o seu dialeto era de Tsincheng, que estava ocupada pelo inimigo, as autoridades recusaram-se a crer na história dele, e prenderam-no sob a suspeita de ser um espião japonês.

Os meus amigos tentaram dissuadir-me da viagem.
- Estamos a muitos quilómetros de Siã, e a senhora não tem comida nem dinheiro para transportar 100 crianças. Pode ser que consiga atravessar se for sozinha, mas não com esse bando de pequeninos - disseram.
- O Senhor cuidará de nós - repliquei. - Creio que estas crianças precisam de ir para Xensi, e não há mais ninguém que possa levá-las. Digam para os maiorzinhos que aprontem os menores, e digam que vamos dar um longo e lindo passeio.
- Mas para que lado a senhora irá? Os japoneses controlam todas as estradas!
- Então precisaremos de atravessar as montanhas e descer até ao rio Amarelo.
- Cruzar as montanhas com todas estas crianças? A senhora deve estar louca!
- Elas não estão a salvo aqui. Qualquer dia destes podem ser bombardeadas e morrer. Há perigo para elas por toda a parte, até que cheguem à região livre da China.

Procurei o prefeito e pedi cereais para a viagem. Depois de muito argumentar, ele disse:
- Dar-lhe-ei o suficiente para chegar à próxima cidade, Ai-weh-deh, e mandarei dois homens para carregar o alimento para a senhora. Admiro a sua coragem, mas é uma loucura.

Saímos bem cedinho na manhã seguinte - cem crianças, cujas idades iam desde menos de três anos até dezasseis.
No começo, algumas delas, excitadas, iam correndo à frente, outras caminhavam sem pressa, e ainda outras precipitavam-se a esmo. Mas à medida que vencíamos a distância, acalmaram-se e contentaram-se em seguir a estrada. As maiores ajudavam as menores, muitas veres carregando-as às costas.
Os dois homens viajaram connosco aquele primeiro dia, e, no dia seguinte, recrutei dois na próxima vila. Os habitantes das cidades e vilarejos ajudavam-nos se podiam, mas a comida andava escassa.

Em muitos lugares não havia estrada, apenas uma trilha de mulas, e a caminhada era morro acima. Dormíamos à beira da estrada ou nos templos. Certa vez pernoitámos num acampamento militar, mas geralmente dormíamos onde nos encontrávamos, a céu aberto. Não possuíamos cobertores, e, para manter-nos aquecidos durante a noite, apertávamo-nos uns contra aos outros. Pedíamos comida pelo caminho, mas muitas vezes o nosso jantar era uma sopa rala. À medida que os dias passavam, as crianças foram ficando irritadiças, dando sinais de exaustão, e muitas lágrimas eram vertidas.
- Ai-weh-deh, os meus pés estão a doer! Os meus sapatos estão furados! Ai-weh-deh, a minha barriga está doendo. Não consigo mais andar.
As crianças mais velhas estavam cansadas demais para carregar as menores, e as nossas marchas foram ficando cada vez mais curtas.

Eu fazia tudo o que podia para desviar a sua atenção das dores e sofrimentos, e fazê-las continuar a penosa caminhada. Cantávamos todos os hinos e corinhos que conhecíamos. Às vezes, eu começava a dizer um texto como: "Louva ao Senhor, ó minha alma", e as crianças respondiam: "E tudo o que há em mim, louve o Seu santo nome" ou então eu dizia: "Jesus Cristo veio a este mundo" e elas gritavam: "para salvar os pecadores". Um nó formava-se na minha garganta, e lágrimas subiam-me aos olhos ao ouvi-las cantar: "Conta as Muitas Bênçãos" quando, no momento, tinham tão poucas bênçãos para contar.

Por doze longos e exaustivos dias, e doze noites enregelantes, continuámos a nossa luta. Quanto distava ainda o rio Amarelo? Quantos dias ainda teríamos de caminhar? Quantas montanhas precisaríamos ainda de atravessar? Eram essas as primeiras perguntas que fazíamos ao chegar a alguma vila.

Afinal, escalámos a última cordilheira, e diante dos nossos olhos descortinou-se brilhando ao sol, qual fita dourada a nos acenar, o rio Amarelo!
- Olhem, lá está Yuen Chu! - gritaram as crianças mais velhas para as menores. - Quando chegarmos lá, teremos o que comer e poderemos remar e nadar.
Mas a pequena cidade de Yuen Chu, localizada nas margens do rio, estava deserta. As casas, vazias. Não havia alimento algum, e as crianças, desapontadas, choraram amargamente.
Finalmente, encontrei alguns soldados.
- Podem dar-nos um pouco de comida? - implorei.
- Quantos são?
- Cem crianças.
- É impossível dar de comer a tanta gente.
Somente temos rações para três dias, e só para nós. Daremos um pouco a vocês, mas de que valerá isso para cem?
- Será que existe alguma comida na cidade?
- Nem um bocadinho! A cidade foi evacuada. Os japoneses estão para chegar. O nosso exército bateu em retirada para o outro lado do rio, e não deixou nada para o inimigo.
Fizemos uma sopa rala e tomámo-la à beira da estrada, e a seguir levei o meu grupo desanimado, desapontado, exausto, até ao rio, perto da balsa (ferry boat).
- Se ficarmos aqui, tomaremos o primeiro barco amanhã cedo - disse, com tanto entusiasmo quanto pude conseguir. Banhámos os pés cansados e deitámo-nos na margem do rio para dormir.

As crianças acordaram muito antes do dia raiar. - Estamos com tanta fome, Ai-weh-deh. Não há comida para nós? - perguntavam.
- Logo estaremos do outro lado do rio, e há muita comida lá. Não vai demorar muito para os barcos chegarem.
Esperámos, forçando os olhos para ver na outra margem. Mas, muito tempo depois do dia clarear, não víamos nem sinal de movimento no outro lado. Percebi, então, que os barcos tinham parado de funcionar, mas nada disse às crianças, embora as mais velhinhas também logo o percebessem.

Finalmente, chamei seis dos meninos mais velhos.
- Voltaremos à cidade para ver se conseguimos encontrar alguma coisa. Os outros precisam de ficar aqui, caso a balsa chegue.
Caminhámos até à sede do acampamento militar, onde perguntei ao capitão:
- Algum barco vai atravessar o rio hoje?
- O rio está fechado. Não vai haver barco nenhum, porque estão todos do outro lado.
- Mas, e a balsa?
- Ela também está fechada. Não há nada que possamos fazer. Os japoneses estão para chegar a qualquer momento.
Caí de joelhos diante deles e implorei que dessem comida para as minhas crianças, mas nada fizeram. Fui a outro posto militar e pedi uma vez mais. O pessoal ali mal podia acreditar que o que lhes dizia era verdade.
- De onde a senhora está vindo?
- Caminhámos de Yangcheng pelas montanhas. Foi uma viagem terrível.
- Dar-lhes-emos um pouco de comida, mas só temos o bastante para as crianças menores. Não podemos alimentar a todos, de forma alguma.

Eu estava quase desesperada. A noite toda preocupava-me e orava, orava e preocupava-me. Minhas forças chegavam ao fim.
Se pelo menos não estivesse sobrecarregada com todas essas crianças, pensei com amargura. Ninguém mais se importou com elas. Porque tive que me meter a mim e a elas nesta situação?
Então, uma voz falou: "Morri por essas crianças e amei a cada uma delas. Dei-lhas para que, por amor de Mim, tomasse conta delas."
Assim, as horas foram passando até o raiar do dia. Uma menina de treze anos, chamada Sualan, veio e ficou parada ao meu lado.
-Ai-weh-deh, a senhora se lembra que quando Deus chamou a Moisés, ele fez o povo de Israel atravessar o mar Vermelho a seco, e todos eles chegaram a salvo do outro lado?
Sacudi a cabeça, assentindo. Sualan sorriu docemente para mim, ao perguntar:
- A senhora acredita nessa história?
- É claro que acredito! - repliquei prontamente.
- Jamais ensinaria a vocês alguma coisa em que não acreditasse.
- Então, por que nós não atravessamos? - perguntou ela com simplicidade.
Essa pergunta me sacudiu.
- Mas eu não sou Moisés - falei, com voz entrecortada.
- É claro que não, mas o Senhor ainda é Deus!
Foi como se tivesse recebido um golpe físico. Todos esses anos em que estivera a pregar, acreditara realmente que Moisés tinha feito o povo de Israel atravessar o mar Vermelho? Acreditara que as águas se tinham afastado e erguido quais muros dos dois lados enquanto eles passavam a pé enxuto? Eu apostara a minha vida no grandioso poder de Deus. Por que duvidava agora?
Voltei-me para Sualan.
- Vamos atravessar - disse-lhe.
E realmente acreditava que sim. Sualan chamou algumas das crianças mais velhas para se reunirem connosco e ajoelhámo-nos em oração. Sualan orou com simplicidade: "Estamos aqui, Senhor, apenas à espera que o Senhor abra o rio Amarelo para nós."
Curvei-me em silêncio, mas no meu coração dizia: "Ó Deus, este é o meu fim. Nada mais posso fazer. Cheguei ao fim. Nada sou. És somente tu, Senhor, agora. Ó Deus, não nos desampares. Salva-nos, prova que és poderoso".

Alguns dos meninos menores vieram a correr.
- Levantem-se, levantem-se! - gritaram. - Há um homem grande aqui!
Ao me levantar, eu tremia da cabeça aos pés. Um oficial chinês estava a observar-me.
- A senhora é a responsável por estas crianças? - perguntou.
- Sim.
- Quantas são?
- 100.
- O que estão a fazer aqui?
- Esperando para atravessar o rio.
- Mas, quem é a senhora?
- Sou Ai-weh-deh, da missão de Yangcheng.
- A senhora está louca? Não sabe que estamos esperando um ataque japonês a qualquer momento? Não sabe que aviões japoneses estão patrulhando o tempo todo? Se virem estas crianças, vão passar fogo nelas. E por falar nisso, quem são estas crianças?
- Somos refugiados tentando chegar a Sian.
- Refugiados! Então por que não atravessaram o rio há muito tempo atrás?
- Não conseguimos barco.
- A senhora não esperava que deixássemos barcos para os japoneses, ou esperava?! Mas vou fazer um sinal pedindo um agora.
Ele deu um assobio longo e grave, como o de um pássaro marinho: "Uu-Uu-Uu" e ergueu o braço.
- O barco virá imediatamente. Há um vilarejo do outro lado onde a senhora pode conseguir alimento.
- Oh, muito obrigada.
- Está cuidando sozinha de todas estas crianças?
- Sim.
- Mas a senhora é estrangeira, não é?
- Sim.
- Escolheu uma estranha ocupação.
Mal ele acabara de falar e as crianças gritaram excitadas que o barco estava a vir. O barco precisou de fazer diversas viagens.
As pessoas da cidade levaram as crianças para as suas casas e deram-lhes de comer até não conseguirem mais. Então, as crianças contaram a viagem terrível que tinham feito através das montanhas.
- Todos nós, os maiores, ajudávamos a carregar os pequeninos - gabavam-se. - E Ai-weh-deh estava sempre carregando um ou dois dos doentes. E quando chegámos ao rio, esperámos, e esperámos por um barco. Orámos para que o rio se abrisse para que pudéssemos atravessar como o povo de Israel atravessou o mar Vermelho, mas Deus sabia que estávamos tão cansados de andar que Ele mandou um barco, e assim foi muito melhor.
Depois de descansarmos alguns dias, partimos outra vez mais, em direcção a Mienchin, onde tomaríamos um comboio que nos levaria a Siã, que ainda estava longe.
As crianças nunca tinham visto um comboio. Ao primeiro sopro da locomotiva e ao silvar do apito, soou um forte grito de terror, e as crianças desapareceram. Tiveram de ser retiradas de debaixo de carroças, de dentro de barris, de atrás de portas. Com dificuldade, foram persuadidas a embarcar.
Em Xanchow o comboio parou. Um carregador gritou:
- Desçam todos, desçam todos. Este comboio não vai continuar, precisam de descer.
- Mas há trilhos à nossa frente; posso vê-los - argumentei.
- Escute, dona - disse ele com impaciência.
- Esses trilhos passam perto do rio. Os japoneses estão do outro lado, e nas partes estreitas do rio. Eles atiram. Compreende?
- Mas, o que podemos fazer?
- Daqui por diante, só andando. Vê aquelas montanhas? A senhora atravessa-as e desce. Então pode tomar o comboio novamente.
- Mas aquelas montanhas têm mais de mil metros de altura, e levamos bebés connosco. Já estamos exaustos. Como poderemos atravessar?
- Como é que vou saber? É melhor procurar o chefe da estação.
Implorei ao chefe da estação:
- Por favor, senhor, não nos pode ajudar? Tenho cem crianças exaustas. Já faz vinte dias que estamos a caminho. As crianças não conseguirão transpor aquelas montanhas.
- Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer. Este comboio não vai adiante, por isso todos têm de desembarcar. Há um barracão ali adiante onde podem passar a noite, e o pessoal dos refugiados lhes dará de comer.
- Oh, por favor, senhor, deve haver alguma coisa que passa fazer para nos ajudar a chegar a Siã.
- Senhora, há milhões de refugiados por toda a China.
- Mas estes são crianças!
- Senhora, não há nada mais que eu possa fazer. Se desejar continuar, o único jeito é transpor aquelas montanhas. Mandarei dois soldados com a senhora. Só existe uma passagem aberta. Os japoneses estão de um lado e o nosso exército do outro, mas os soldados ajudá-la-ão a atravessar.
- Quanto tempo levaremos?
- Se partir bem cedinho, deve chegar a Tungkwan em dois dias.

Ergui os olhos para as montanhas, cujos topos estavam ocultos pelas nuvens. Pelo que podia ver, havia apenas uma ténue trilha de mulas.
- Muito obrigada - disse. - Se não existe outra maneira, temos de fazer a tentativa. Estaremos prontos para partir de madrugada.
Não consegui dormir. A jornada que nos estava pela frente seria uma provação até para os mais fortes, e alguns estavam doentes. Mas o que podia fazer? Não podíamos voltar, e não podíamos ficar ali. Precisava de levar as crianças para a segurança, não importava o que isso me custasse.
A jornada foi bem pior do que qualquer outra que já fizéramos. As trilhas da montanha eram escarpadas e em muitos lugares tinham desaparecido de vez. Tínhamos de nos arrastar sobre pedras soltas e escorregar por encostas íngremes. A viagem foi um pesadelo e, sem a ajuda dos soldados, muitas das crianças jamais teriam chegado. Tínhamos de vigiá-las pois escorregavam constantemente. Os soldados e eu tínhamos de carregar uma, às vezes duas crianças durante o tempo todo, e constantemente animar as outras a prosseguirem.
Dormimos na montanha nua e depois arrastámo-nos com dificuldade por mais um longo dia. À noite, chegámos a Tungkwan e ficámos entusiasmados ao avistar a estação ferroviária. Não obstante, os oficiais sacudiram a cabeça.
- Não há mais trens daqui para a frente; é muito perigoso.
- Mas o que podemos fazer? - a minha voz elevou-se em desespero. - Caminhámos desde Sanchow através das montanhas e, antes, tínhamos andado vinte dias desde Yangcheng. Vamos para as partes livres da China, para os orfanatos da Sra. Chiang. Eles estão à nossa espera. Não há nada que possa fazer? As minhas crianças não conseguem andar mais; muitas estão doentes.
- Se a ajudar, está disposta a obedecer às minhas instruções implicitamente?
- Sim, se com isso conseguir fazer que as crianças cheguem ao seu destino.
- Está disposta a enfrentar por conta própria o risco da viagem?
- Sim, oh, sim!
- Então vou contar-lhe um segredo. Existe um comboio que vai até lá. Todas as manhãs, antes do raiar do dia, um comboio de carvão vai até Hua Xan. Às vezes onde o rio é estreito, os japoneses atiram, mas às vezes não atiram. Se ouvirem vozes, ou virem gente é garantido que atirarão. A senhora promete fazer as crianças ficarem quietas?
- Oh, sim. Farei com que não se mexam nem façam barulho algum.
- Então, amanhã, antes do dia clarear, encontrarão o comboio de carvão esperando aqui. Embarquem nele. Mas se dão importância à vida, mantenham as cabeças abaixadas. E boa sorte, senhora! Admiro a sua coragem.

Acomodámo-nos nos campos, e quando os menorzinhos adormeceram, chamei Sualan e os outros meninos e meninas mais velhos.
- Ouçam cuidadosamente - disse-lhes. - Vocês todos têm idade suficiente para compreender que esta noite precisamos de manter os pequeninos absolutamente quietos. Se fizerem o menor ruído, os japoneses atirarão em nós. Precisam de dormir um pouco, mas quando eu vos acordar, terão de carregar os pequeninos e colocá-los entre grandes pedaços de carvão dentro do carro.
- Mas o que faremos se acordarem?
- Estão tão cansados que não acordarão, se vocês forem cuidadosos. Quando acordarem, já estaremos fora de perigo, compreendem?
- Sim, Ai-weh-deh.
- Então, vão dormir agora. Acordá-los-ei quando for a hora de partir.
- Mas, e a senhora, não vai dormir, Ai-weh-deh?
- Talvez tire uma soneca - respondi.
- Mas a senhora está doente, Ai-weh-deh; devia descansar. Tem estado doente há dias. A senhora carregou uma, às vezes duas crianças, o dia todo, e deu quase toda a sua comida para nós.
- O Senhor me ajudará. Descansarei quando chegarmos a Siã. Vamos, vocês precisam de dormir.
Estendi-me no chão nu, cada osso do meu corpo doendo, mas o coração emocionado com o amor e compaixão que as crianças demonstravam por mim.
- Por favor, meu Deus, dá-me forças para levá-las até onde receberão os devidos cuidados - orei. - Ajuda-nos para que todos cheguemos a Siã.
Depois de algumas horas, acordei os mais velhinhos e, em silêncio, carregámos os pequenos, um a um, e os colocámos suavemente em cima do carvão. As pelotas duras não os perturbaram pois tinham dormido fora tantas noites, e, além disso, estavam totalmente exaustos pela jornada dos dois últimos dias.
Nenhum tiro foi disparado. Quando os pequeninos finalmente acordaram, gritaram e riram ao ver os companheiros cobertos de carvão.
- Vocês ficaram pretos durante a noite - diziam rindo. E, com a facilidade de recuperação própria da infância, por algum tempo ficaram tão alegres quanto os grilos.

Uma vez mais tivemos de deixar o comboio e, com as roupas imundas, partimos para a nossa última caminhada. Só três dias até Siã, disseram-nos. Esmolávamos comida aos soldados e nos vilarejos; dormíamos à beira da estrada, e continuámos a tentar cantar até que, finalmente, Siã, que aos nossos olhos era algo como a Cidade Celestial, estava diante de nós.
Os nossos pés exaustos apressaram-se, mas tivemos de parar, desanimados. Os portões da cidade estavam fechados e, embora eu implorasse, o guarda recusou-se a abri-los.
- A senhora não pode entrar aqui - gritou. - Os portões da cidade estão fechados para refugiados. A cidade já está fervilhando com eles. Não há comida. Nada. Precisa de procurar outro lugar.
- Mas temos dinheiro à nossa espera. Faz vinte e sete dias que estamos na estrada. Disseram-nos que viéssemos para aqui. O senhor precisa de nos deixar entrar, sim!
Este último desapontamento foi demais para mim. Arrastámo-nos lentamente à volta dos muros da cidade, mas todos os portões estavam fechados. Que podia eu fazer? Para onde poderíamos ir?
Então, alguém condoeu-se de nós e disse-me que havia um templo budista em Fu-Feng, onde recolhiam crianças e cuidavam delas. Distava apenas um dia de viagem de comboio, e era um dos orfanatos da Sra. Chiang.

Nessa altura, eu estava doente demais para me lembrar do que aconteceu então. Devemos ter tomado o comboio, pois quando chegámos ao orfanato, havia cama e comida à nossa espera. Finalmente, as minhas crianças estavam a salvo! O meu trabalho estava terminado.
Na manhã seguinte, reuni-as e disse-lhes: "Vamos agradecer a Deus o Seu amor para connosco." Recitámos "0 Senhor é o meu pastor" juntos, e despedi-me delas.
O pessoal do orfanato implorou-me que ficasse e descansasse, mas na minha mente reinava o tumulto. Não conseguia descansar; precisava de continuar. Havia tanto para ser feito! "Deus cuidará de mim", eu ficava a repetir, e saí a pregar nos vilarejos.

Não me lembro do que aconteceu depois até me encontrar num hospital em Siã. Aos poucos, fui descobrindo o que sucedera.
Eu tentara pregar num vilarejo, mas perdera os sentidos. Ninguém sabia quem eu era, e um menino foi em busca do missionário norte-americano que arranjou um carro de bois para me levar à casa da missão. Em dois dias, chegou um médico do hospital de Siã que meneou a cabeça ao ver o estado em que me encontrava.
- Há pouquíssima esperança; ela está com pneumonia e tifo. Vocês sabem quem é ela?
- Não temos a menor ideia. Ela não disse uma palavra sequer desde que a trouxemos para cá.
- Se pudéssemos levá-la para o hospital, haveria uma possibilidade de salvá-la. É uma viagem longa, mas se conseguíssemos acrescentar um vagão de transporte de gado ao comboio da meia-noite, poderíamos levá-la assim como está, nesta cama.

Fui levada naquele vagão de gado e mais tarde fiquei a saber que amigos bondosos e desconhecidos fizeram a viagem de joelhos ao redor da cama mantendo-a firme durante a jornada. Eles mal ousavam esperar que eu chegasse com vida a Siã.
De repente, para surpresa deles, comecei a cantar um hino; depois orei e preguei um sermão sobre o filho pródigo. Eles não podiam compreender tudo o que eu dizia, pois o dialecto que eu falava era do norte, mas ainda assim acreditavam que eu fosse chinesa.
No hospital, travou-se uma batalha pela minha vida.
- Ela devia estar morta há muito tempo - disse o médico. - Ela tem malária, tifo, pneumonia, subnutrição, exaustão total e provavelmente diversas outras desordens menores.

Eu estava doente demais para falar, e, por mais de um mês, estive prostrada naquele hospital, mal tomando consciência do que me cercava. Então, como que por milagre, o Sr. Lu de Yangcheng, chegou a Siã. Ele fora posto em liberdade e saíra prontamente em busca do outro grupo de crianças e de mim.
O pastor chinês levou o Sr. Lu para me visitar, e ele regozijou-se muito ao descobrir que eu ainda estava viva.
- Ela veio de Yangcheng, no norte da China - disse ele aos médicos e às enfermeiras.
- Mas então o que está a fazer aqui em Siã a centenas de quilómetros?
- Ela veio trazer para a liberdade crianças que estavam na região ocupada pelos japoneses.
- Qual é o nome dela?
- Só sei o nome chinês, Ai-weh-deh, mas um menino que ela trouxe de Yangcheng tem um livro que pertencia a ela. É um livro em inglês e tem alguma coisa escrita nele.
Acabaram encontrando o livro, e na contracapa estava escrito em inglês: "Para Gladys, da tia Bessie".
Eles olharam-me estarrecidos. Seria possível que eu não fosse chinesa?!

Adaptado do livro APENAS UMA PEQUENA MULHER - Biografia de Gladys Aylward com Christine Hunter



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