sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A MINHA PRISÃO DE ÓDIO


"Se ele tivesse feito à sua filha o que fez à minha, provavelmente também o odiaria."


Aconteceu ao anoitecer de um nublado sábado de Janeiro.
Tinha o jantar pronto para Patrícia, que geralmente chegava às cinco da tarde do seu trabalho no centro de Denver.
Às sete eu já estava caminhando a passos largos pela sala, tensa e preocupada. Patrícia não agia dessa maneira: era uma mulher madura, de 35 anos, que sempre me mantinha informada do seu paradeiro. Como de costume, tinha-me telefonado às cinco para me dizer que estava activando o alarme contra ladrões e preparando-se para sair do escritório.
Eu estava agora muito preocupada. Não tinha ninguém neste mundo, a não ser Patrícia. O seu pai tinha morrido quando ela tinha quinze anos, e embora houvesse bastante diferença de idade, éramos muito amigas. Patrícia tinha vivido noutra cidade por algum tempo, mas regressou a Denver para frequentar um colégio religioso, trabalhando num escritório em regime de tempo parcial. Planeava tornar-se missionária para que outras pessoas conhecessem a Cristo, e tudo nela me dava grande satisfação.


Telefonei para o seu escritório. Nenhuma resposta. Depois telefonei para a companhia que tinha instalado o alarme contra ladrões, e inteirei-me que o alarme tinha sido activado às cinco da tarde.
Teria ocorrido um acidente? Não queria telefonar à polícia; era como admitir que podia ter acontecido algo terrível. Mas finalmente telefonei.
"Não - disseram eles depois que a descrevi -, não temos nenhuma informação."
Telefonei freneticamente para os hospitais, e informaram-me que nas últimas horas não tinham internado ninguém que se parecesse com Patrícia.
Olhei para o relógio: nove da noite. Um dos comentários de Patrícia durante a nossa última conversação telefónica soava na minha memória como um sino fúnebre: "Esqueci-me de estacionar o automóvel na frente do edifício, mamã", - tinha ela dito -. Tenho medo de ir àquela zona de estacionamento da parte de trás."

Desesperada agora, telefonei para o seu professor no colégio religioso. Respondeu-me que iria com alguns dos jovens ao escritório de Patrícia. Telefonou-me meia hora mais tarde. Nenhum vestígio de Patrícia ou do seu veículo.
"Obrigada, Eduardo", disse debilmente, sentindo que o meu coração se afundava mais e mais.
"Há algo que eu possa fazer?", perguntou-me.
"Não", suspirei, colocando o telefone no suporte.
Durante toda a noite aguardei na sala, telefonando para a Polícia aproximadamente de hora a hora. De manhã cedo veio um agente da polícia para obter uma descrição detalhada de Patrícia, do seu vestuário e do seu automóvel. Dei-lhe uma foto que tinha tirado em frente da igreja poucos meses atrás.
Pelas 1o horas, telefonaram da central da Polícia para formularem uma pergunta estremecedora: "A sua filha tem alguma cicatriz ou marca que a possa identificar?"
Recordei que quando criança Patrícia estava a brincar com alguns amiguinhos da vizinhança, tentando imitar as façanhas de Tarzã, escorregou, e o ramo ponteagudo de uma árvore causou-lhe um profundo golpe no braço. A única coisa que lhes pude dizer foi comentar sobre tal cicatriz.

Telefonaram mais duas vezes. Na segunda vez queriam ter o nome do Pastor. Já pela tarde decidi que seria bom preparar alguma coisa para comer. Precisamente nesse momento vi que o director do nosso côro, Harvey Schroeder, se aproximava da minha casa cabisbaixo. Dois homens que tinham descido de um veículo da esquadra da Polícia acompanhavam-no.
Recebi-os à porta. "Encontraram Patrícia, não é verdade?"
"Sim, Senhora Hanna. Encontrámo-la.", respondeu um dos homens com olhos denotando dor profunda.
"Ela não virá para casa, não é verdade?"
"Não."

Dois jovens que tinham saído para caçar no domingo de manhã encontraram o corpo dela à margem do caminho, aonde evidentemente tinha sido lançada de um automóvel.
A casa dava voltas e eu parecia suspensa no espaço.
"Senhor Hanna... Senhora Anna!"
Ajudaram-me a sentar. Estive ali por um longo espaço de tempo olhando sem nada ver.
Depois fiquei só, na casa desolada. Quando o vento nocturno agitava os ramos endurecidos pelo gelo contra a janela do quarto, eu estava ainda desperta, pensando nos últimos momentos da minha filha sobre a Terra. Tinha sido violentada e esfaqueada.

Não podia crer que alguém pudesse fazer algo tão perverso, tão cruel contra outro ser humano! Quando pensava no assassino desconhecido, um ódio frio se apoderava de mim, um ódio que ia crescendo cada vez mais.
Dominada por uma paixão de ver apresentada perante a justiça a pessoa que tinha assassinado a minha filha, examinava os diários e mantinha-me em contacto com a Polícia.
Em Março o criminoso assestou novo golpe. Certa manhã foi encontrado o corpo de uma mulher atrás de uma Igreja. Junto a ela alguém tinha escrito na neve: «Odeio as mulheres».
Poucos meses depois outra mulher foi atacada, mas conseguiu escapar. A polícia suspeitou que se tratava do mesmo homem. Finalmente, num sábado de tarde no mês de Outubro, uma mulher foi atacada num centro comercial no momento em que entrava no seu carro. Enquanto lutava desesperadamente contra o homem que já a tinha ferido, um polícia correu para o local, e prendeu-o.

Nunca me esquecerei do momento em que vi o rosto do assassino da minha filha olhando-me de uma página do diário Post, de Denver. O seu nome era Carlton Moore. Pegando numa faca de abrir cartas, lenta e deliberadamente comecei a golpear contra o seu rosto, repetidamente, até que o papel ficou reduzido a tiras.
Agora tinha alguém em quem podia concentrar o meu ódio acumulado. Li que Moore tinha sido criado num lar com problemas, com um pai alcoólico e uma mãe perturbada. Embora ele tivesse um elevado quociente intelectual, tinha sido tão maltratado e descurado que a partir dos nove anos tinha entrado e saído muitas vezes do reformatório. Carlton Moore tinha sido posto em liberdade condicional só dois meses antes da data em que matou a minha filha.
Quando se realizou a audiência pública do julgamento, fui ao tribunal localizado no centro da cidade, e observei tudo do fundo da sala. Se os meus olhos pudessem matar, Moore teria sido morto naquele instante.

Segui o caso de perto. Carlton Moore confessou-se culpado pelo assassinato que tinha cometido em Março, e foi sentenciado a prisão perpétua.
Era tão injusto! Como podia ele continuar a viver, quando a minha filha tinha morrido?
Passaram-se meses e finalmente uma ano. A amargura e o ressentimento apoderavam-se de mim cada vez mais. Isto reflectia-se no meu procedimento, e especialmente na minha linguagem cáustica. Dei-me conta de que os meus companheiros de trabalho evitavam-me.
Nestas circunstâncias, naturalmente, não me sentia feliz. Convertida quase numa reclusa, recusava convites para jantar ou para assistir a actividades sociais, e ía à Igreja mais por hábito do que por desejo.
Transcorreram quase dois anos, anos de visitas solitárias às sepulturas de Patrícia e do meu esposo. Agora, com 62 anos, não me interessava quanto tempo mais poderia viver. A única coisa que parecia viver em mim era o ódio ardente que estava no meu interior como um fogo subterrâneo numa mina de carvão, fumegando, consumindo em mim tudo o que outrora havia respondido ao amor, ao riso e à beleza.

Foi então que ocorreu algo de decisivo numa fria manhã de Domingo, em Dezembro de 1971, na classe bíblica da minha Igreja.
Don Gentry, dirigente da Sociedade dos Gideões - Sociedade Religiosa Internacional que se dedica a distribuir Bíblias em grande escala -, veio para nos falar de um plano através do qual podíamos enviar Bíblias a qualquer parte, como uma homenagem a seres queridos.
Enquanto falava, as suas palavras pareciam desvanecer-se. Um outro Alguém estava-me falando com uma voz suave, delicada, que me sussurrava junto ao ombro: A Minha vida também teve um fim brutal. No entanto, o Meu Pai não desprezou os Seus filhos perdidos. Sabia que era Jesus. Consegue a liberdade perdoando, parecia dizer-me. Sai da tua prisão de ódio. As palavras que tinham sido ditas num sussuro junto ao meu ombro ressoavam-me aos ouvidos como sinos.

Querido Jesus, orei, como posso perdoá-lo de verdade com toda esta amargura que há no meu coração?
E veio a resposta: Esqueceste-te da Minha promessa? «Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celestial vos perdoará a vós» (Mateus 6:14).
A classe tinha terminado mas eu tinha a sensação de que tinham transcorrido apenas uns minutos. Sentia-me com se estivesse num estreito corredor, nem de um lado nem do outro. Tremente, levantei-me do assento e aproximei-me de Don Gentry. Ouvi que a minha voz lhe pedia que enviasse algumas Bíblias para a penitenciária. E depois, enquanto preenchia o cheque, perguntei: "Podem entregar uma de forma pessoal?»
"Sim", disse ele.
"Então levem uma Bíblia a um presidiário chamado Carlton Moore e digam-lhe: 'Porque Jesus a perdoa, a Sra Hanna o perdoa; e porque Jesus disse que devemos amar-nos uns aos outros, a Sra Hanna o ama.'"

Foi como se outra pessoa estivesse falando. Mas logo que as palavras me saíram da boca, senti como se eu tivesse saído duma cela de ferro, livrando-me de algo que me mantinha enclausurada.
Quando cheguei a casa, caí sobre a cama e comecei a chorar pela primeira vez durante meses, soluçando fortemente até que não me restaram mais lágrimas.
Senti-me livre. Quando tinha feito o gesto de perdoar com o presente da Bíblia, Deus tinha removido o rancor e a amargura que se tinham acumulado no meu coração por tanto tempo. Levantei-me e fui até à janela sentindo-me como uma criatura que enfrenta um novo dia.
Tinha deixado de nevar, e o sol resplandecia num mundo fresco e branco, com montanhas que se elevavam à distância. Sentia-me como se pudesse voar até esses picos e voltar sem barreira alguma. Junto da janela iniciei uma oração que prosseguiria por longo tempo, pedindo que Carlton Moore encontrasse a Jesus e fosse libertado espiritualmente, como me tinha sucedido a mim.

Passaram-se nove meses. Agora estava vivendo uma vida plena e feliz. Embora nada tivesse ouvido acerca do meu presente daquela Bíblia, não me preocupava. Ao regressar certa tarde de uma visita a uns amigos, entrei em casa e ouvi o telefone tocar. Era Don Gentry, da Sociedade dos Gideões.
"Onde tem estado? - disse rindo. - Tenho tentado comunicar-me com a senhora há já bastante tempo." Contou-me então que tinha uma carta para me ler. Era de B. L. Shelton e Harry Palmer, dos «gideões» que tinham levado a Bíblia de presente ao homem que matara a minha filha. "Digam à Sra. Hanna que ela me deu um presente como nunca antes tinha recebido. Creio que, se ela me pode mostrar tanto perdão, tenho esperança e fé que Deus pode fazer o mesmo por mim."

Quando Don Gentry acabou de ler a carta, estávamos a chorar fortemente de tal maneira que mal podíamos falar.
Agora a minha vida mudou mais ainda quando comecei a comunicar-me com Carlton Moore através dos que o visitavam e também mediante o intercâmbio de correspondência que se iniciara entre ambos.
Apercebi-me de que quando ele entrou na prisão tinha uma atitude grosseira e mal-humorada, mas depois de receber a Bíblia tinha mudado de forma notável. - "Ninguém, - disse ele - nunca me tinha dito que era amado, ou que Jesus me amava. Sempre me tinham dito que quando morresse iria para o inferno."

Nos anos que se seguiram à sua conversão, Carlton Moore transformou-se num novo homem, sempre pronto para ajudar os outros presidiários, ensinando-os a estudar a Bíblia de forma sistemática, dando-lhes conselhos e orando por eles, e distribuindo Bíblias e material religioso escrito, em parte do que eu lhe enviava.
Outro dia, recebi uma carta, típica das muitas que me têm chegado ultimamente. "Desejo que saiba, Sra Hanna - escreveu a irmã de um preso - que o meu irmão que está na prisão foi conduzido a Cristo por Carlton Moore. Jamais saberá o que isso significa para nós."
As lágrimas empanaram-me a visão. Sabia quanto significava para eles! Porque Deus me tinha mostrado que Carlton Moore se tinha convertido no missionário para Cristo que a minha filha tinha planeado ser.

O velho Carlton Moore tinha morrido, e o mesmo tinha sucedido com a velha e amargurada Hasula Hanna
quando ela encontrou o miraculoso poder do perdão.

Hasula Hanna
Traduzido e impresso com permissão de Guideposts.
Revista SINAIS DOS TEMPOS