quinta-feira, 8 de março de 2018

*O que Seria do Mundo Sem as Queridas Mulheres?!!!...


CRÓNICA
António Lobo Antunes



PARAFUSOS E PORCAS

        Quando eu era miúdo, na periferia de Lisboa onde fui feito e onde cresci, um subúrbio pobre, havia um grupo de excursionistas chamado GRUPO EXCURCIONISTA OS PARAFUSOS, do qual faziam parte só homens, que passavam um domingo por mês num autocarro cheio de litros de tinto, partiam de manhã e regressavam ao fim da tarde, completamente grossos, a lutarem com a maré alta do passeio, a gritarem, a abraçarem-se, a rirem, a empurrarem-se, na panóplia completa dos bêbados, no meio de quedas, discussões, insultos e cantorias, dispersando-se aos tropeções, alguns de gatas, uns calmos, outros impetuosos, outros coléricos, alternando abraços com empurrões e juras de amizade eterna com tentativas de pancadaria, entre vómitos e tropeços. Conhecia-os mais ou menos a todos porque pertenciam ao mesmo bairro que eu, e a maior parte deles, nos intervalos das excursões, eram pacíficos e cordatos. Trabalhavam por ali, em oficinas e coisas assim, e depois do trabalho, antes do jantar, passavam pelo tasco da sede do Grupo para um copo fraterno, muitas vezes silencioso e soturno. Nas excursões não eram permitidas mulheres. Dos lados do autocarro havia dois lençóis estendidos, amarrados com cordas, anunciando
        GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS
        por baixo do
        GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS
        a frase, em letras gordas
        AS PORCAS FICARAM EM CASA
        e, de facto, não se via uma só porca nas redondezas, parafusos apenas, às palmadas nas costas uns dos outros, felizes pelos delirium tremens que se aproximavam, transportando a alegria em garrafões, ainda pausados e calmos. Meia dúzia de porcas, inquietas, vigiavam a partida de longe, na certeza de uma noite tempestuosa, escondendo santinhos e bonecos de barro nos quintaizecos das traseiras porque, dali a horas, viria um temporal de cacos, cuja violência era celebrada durante dias, com frases de felicidade no género
        - Grande domingo: apanhámos cá uma bebedeira...
        isto dito, claro, com orgulho e natural satisfação, mudando de conversa a fim de cumprimentarem, com solenidade, as senhoras que passavam, tirando o boné numa educação lenta, já de alma apontada ao próximo passeio.
O autocarro, quase podre, andava uns quilómetros, poucos, na direção de uma berma propícia, e gastavam o dia aos encontrões, a mamarem dos gargalos, enquanto as porcas escondiam bibelôs, retratos e mobília mais frágil. Partiam de gravata e casaco e regressavam de fralda da camisa de fora, com a gravata amarrotada no bolso, ao mesmo tempo joviais e comovidos, até as porcas os pastorearem para casa a tropeçarem nos próprios sapatos. À medida que os tempos iam mudando e os parafusos envelhecendo
        (começaram a aparecer bengalas, muletas, bocas tortas, um bracinho defunto, uma perna que se arrastava, as primeiras mortes
        - os fígados gastam-se, amigos)
        o GRUPO EXCURCIONISTA OS PARAFUSOS deu em diminuir e as porcas, mais resistentes, a ganharem força. A frase, em letras gordas
        AS PORCAS FICARAM EM CASA
        desapareceu dos lençóis, e as ditas porcas começaram a acompanhá-los nas excursões de domingo onde havia agora água mineral e almofadas para os rabos cansados dos parafusos que já não discutiam, não se abraçavam, não riam, acocorados em pedras à beira da estrada, enquanto as porcas conversavam umas com as outras e lhes davam ordens, transformando vinho em água-pé primeiro e confiscando-o finalmente, atentas às queixas
        - Mijei-me todo
        ou
        - Não consigo segurar as fezes
        equilibrando-os com dificuldade e uma página de jornal na mão, a puxá-los
        - Anda lá, anda lá
        para trás de uns arbustos, nos quais se distinguia uma cabeça vencida.
O autocarro acabou, sem pompa, num baldio do bairro, os domingos terminaram, e os parafusos principiaram a permanecer no bairro, em banquitos ao acaso, com boinas coçadas a cobrirem as calvícies, e as bocas desmobiladas a chuparem cigarrinhos meio apagados. Elas levavam-nos para casa equilibrando-lhes os sovacos
        - Mexe-te, emplastro
        e agarrando-os pelas calças que amoleciam. Quando me tornei adolescente já poucos sobravam, sem diálogos, sem interesses, sem júbilo algum, a engolirem os comprimidos que elas lhes estendiam numa obediência mansa. No caso de um deles perguntar
        - O Jorge?
        uma voz respondia
        - Morreu o ano passado
        e o queixo do que perguntava descaía um bocado, numa aceitação melancólica. As porcas, essas, iam aumentando de autoridade
        - Estás cada vez mais um farrapo
        e o GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS dissolveu-se, substituído, progressivamente, por idosas enérgicas, a quem eles se submetiam num cansaço desarticulado. Deviam trocar-se os letreiros por cartazes que anunciassem
        GRUPO EXCURCIONISTA AS PORCAS
        com outro por baixo
        OS PARAFUSOS ESTÃO QUASE TODOS NO CEMITÉRIO
        enquanto elas faziam crochet no murozito da estrada, a contarem histórias dos netos, que os parafusos sobreviventes nem escutavam. Talvez, quando muito
        - O Jorge morreu mesmo?
        seguido de um chichi desolado pelas tíbias abaixo, um lamento de mulher
        - O que eu aturo
        o que os dois ou três parafusos que resistiam já nem conseguiam ouvir. O tasco é agora uma butique que vende roupa feminina a pessoas para quem os parafusos não significam nada.

Texto EXCELENTE do Escritor e Médico Psiquiatra Dr António Lobo Antunes in Revista Visão, 2 de abril de 2015.
*O Título da postagem é meu, não resisti... Mas o que seria do Mundo sem os Maravilhosos Homens?!!! Mas SEM o álcool, por favor! Era o MELHOR presente para todos. Sou muito feliz por ter um marido que não fuma nem bebe bebidas alcoólicas! E ele é também muito feliz! Quanto a Saúde das PESSOAS, e o ESTADO, beneficiariam!!!... EE