sexta-feira, 2 de março de 2018


ARTIGO DE OPINIÃO
                 Artes

SER MÉDICO, SER ARTISTA

A Medicina tem-se revelado fonte inspiradora de várias artes: Literatura, Pintura, Escultura... Quantos médicos sentiram necessidade de se perder entre rasgos de imaginação depois de despirem a bata. O legado é extenso.
Por Professor Doutor Armando Moreno

       As relações entre os médicos e a sociedade situam-se nas mais variadas áreas das actividades humanas e podem ser ilustradas por meio de diversificados processos e realizações: clínica, investigação, caridade, arte, pedagogia, divulgação, política, filosofia, desporto, história. Todos estes meios têm sido utilizados pelos médicos enquanto profissionais ou, noutros casos, como actividades colaterais. O palco de clivagem entre cada uma destas formas, enquanto colaterais ou enquanto profissionais, nem sempre é bem definido pois não podemos imaginar a obra de Abel Salazar sem a sua formação médica, nem os escritos de João de Araújo Correia sem a sua prática clínica. Vale a pena relembrar todas estas actividades? Se vale, com que finalidade?
       Sempre tenho afirmado que não sou historiador mas "historiólogo": a História interessa-me, essencialmente, para tirar conclusões para a vida moderna. Nem sempre estas comparações são claras ou patentes. No último Congresso de Medicina da Ordem dos Médicos, realizado em Coimbra, sobressaiu uma tónica: a importância das novas tecnologias e os desvios que a Medicina iria sofrer em função dessas tecnologias. As abordagens assumiram tons de alarmismo, como se a Medicina estivesse prestes a sofrer um ataque de marcianos.
       Como os marcianos, essas tecnologias surgem, aos olhos de uns, os mais antigos, como monstros desconhecidos, para outros, os mais novos, como resultado de pesquisas científicas de resultados nunca antes vistos. Ora a História ensina que as novas tecnologias surgiram ao longo dos séculos, provavelmente de modo muito mais importante do que as que surgem nos nossos dias: o que pensariam os médicos de então quando Leeuwenhoek, depois de inventar o microscópio, lhes disse que na boca existem bichinhos que aí se reproduzem? Quando Lister iniciou a prática da vacinação, dizia-se que os vacinados mugiam como vacas e que nasciam cornos no local da vacinação. Embora estas novidades tivessem um impacto estrondoso, a Medicina seguiu naturalmente o seu caminho.
       É certo que o médico se encontra cada vez mais absorvido pelas actividades diárias, canalizado por um ensino cada vez mais tecnológico e menos humanista. Na maioria, os médicos nem se dão pela importância que as lições da História assumem na actividade clínica. Aos poucos, a preparação em áreas da Psicologia, da Sociologia, da relação afectiva são desmembradas e constituem cursos de especialidade, porque o médico deixou de ter tempo para essas actividades que eram, não há muito, a raiz da sua relação com os doentes.
       Felizmente, muitos cavaleiros andantes reservam-se o direito de manter essas actividades na vida clínica. Vivemos, realmente, um período fulcral e decisivo da reorganização hospitalar a merecer uma profunda meditação, a substituir o deixa correr que tem presidido ao desenrolar dos acontecimentos. Como Director de uma Escola Superior de Saúde em que estas profissões são ensinadas, preocupo-me especialmente com esta nova ocorrência e a comparação com as lições da História tem sido de elevada ajuda na clarificação destes aspectos. Por isso me interesso por conhecer as actividades que os médicos desenvolvem ao longo dos séculos, no primado da Filosofia, da Política, do Desporto, das Artes.

A Liberalização das Profissões

       Uma das grandes mudanças no hábito hospitalar reside na emergência de novos cursos, de profissões mais ou menos antigas elevadas agora à categoria de bacharelatos e de licenciaturas. É uma realidade imparável de que muitos médicos não têm ainda consciência. Mas a História tem uma importante palavra a dizer.
       Embora hoje se possa entender que o exercício da cirurgia é constituído em 75% pelo diagnóstico e adequação da terapêutica e só 25% pertencem à técnica cirúrgica, nem sempre assim foi. Durante séculos, a cirurgia era praticada por barbeiros, que acumulavam com as profissões de dentista e de sangrador. O diagnóstico e a terapêutica a seguir estavam entregues aos médicos. Assim em Portugal, como em toda a Europa. O cirurgião era, por natureza, um técnico, um indivíduo desprezado porque a sua profissão era executada com as mãos (do grego cheirus - mão) e, como é sabido, os nobres não gostavam do trabalho braçal (neste caso manual). Daí que os profissionais de Medicina, entendidos como os nobres da Saúde, porque formados pela universidade, não se rebaixassem a fazer Cirurgia. Acresce que, durante séculos, o médico usava trajes de rendas e brocados que seriam conspurcados no acto cirúrgico.
       Aos poucos, a cirurgia foi tomando volume, experimentando técnicas, saiu da sua condição de secundária e o cirurgião passou a ser considerado par do médico. Foi a emancipação, o desapego à subalternidade, a especialização que lhe deram o desenvolvimento para ascender à categoria semelhante à do médico. E não foram os médicos que abriram as portas, mas os cirurgiões que as forçaram.
       Transportemos este raciocínio para as actuais novas profissões ditas tecnológicas, como é o caso do enfermeiro, do técnico de radiologia, de cardiopneumologia. Em primeiro lugar, é um erro considerá-las na área exclusiva das tecnologias. Se a Medicina é uma das ciências mais ligadas ao humanismo, não se veem em que a Enfermagem o seja menos. Em segundo lugar, desejam os médicos que na sua equipa de trabalho os enfermeiros sejam competentes. Em terceiro lugar, vai ser a capacidade se seguir um estudo próprio, a especialização liberta de preconceitos, a sua formação científica, que vai permitir à Enfermagem atingir o grau de excelência que lhe foi negada durante séculos, utilizando os seus serviços apenas para trabalhos braçais ou de assistência e caridade. É a mesma História que aponta o caminho. Custa mudar as mentalidades, estamos habituados a entender que mesmo na assistência aos doentes existem hierarquias de valor, mas um enfermeiro mal apetrechado pode dar origem a um erro tão fatal à cabeceira do doente, quanto o médico. Numa sala de operações inglesa ou americana, a instrumentista é a responsável pela manutenção da higiene e esterilização e não há hierarquia médica que se sobreponha a isso. A posição ancestral a que estamos habituados, quer se queira quer não, tem os dias contados. É necessário olhar para a situação sem preconceitos, dando uma nova organização às equipas de trabalho, em que cada um tenha um lugar definido, com base na competência. Esboçar ou encetar um antagonismo entre quem deve colaborar é uma atitude negativa e de más consequências. É certo que, no final, a quem se pedem responsabilidades é ao médico, porque é nele que o doente confia. Mas se um doente tiver um desfecho fatal porque o enfermeiro trocou as embalagens, o médico pede responsabilidades ao enfermeiro. Só que, para ele ser responsável, tem de ter adequadas condições de aprendizado. Todos com os olhos postos no doente.

Vestígios da Profissão nas Artes

       É curioso observar que as obras artísticas de médicos abordam com raridade os temas da sua profissão. Os primeiros poemas escritos por médicos que chegaram até nós são dedicados ao Saber, ao estudo, ao conhecimento. João Pinto Delgado deixou uma colecção que merece leitura. Assinale-se ainda a contribuição valiosa de Estevão Rodrigues de Castro e Domingos Pereira Bracamonte. Este deixou uma série interessante de poemas relacionados com a dietética. Mas temos de procurar com afinco para encontrar textos de verdadeiro cariz médico mormente temas sociais ligados à Medicina. A enorme contribuição dos médicos avantaja-se em temas gerais de referência literária, seja na poesia, no conto, no romance e mesmo no ensaio literário.
       É certo que podemos entender que Rodrigues Castelo Branco, Amato Lusitano, deixou, nas suas Centúrias, saborosos textos de carácter prático, por onde se podem vislumbrar aspectos da relação social entre médicos e doentes. Também outro médico, Mestre Afonso, dedicou alguns fragmentos na sua viagem através de África, a aspectos médicos muito escassos. Mas foi necessário aguardar até ao século XIX para Júlio Dinis e, já no Século XX, Fernando Namora, nos darem figuras e cenas carregadas de características médicas, com pinceladas firmes e caracterizações notáveis. A figura do João Semana está hoje tão viva como quando foi criada, bem como as cenas jocosas em que tomou lugar. Estou a lembrar-me da história da Última Ceia, n'A Morgadinha dos Canaviais ou a visita do João Semana à aldeia. Vale a pena desenterrar os seus velhos livros do pó do tempo e reler estas passagens.
       No campo da Pintura, o cenário é semelhante. Surgem temas médicos com alguma raridade: merecem referência os trabalhos de natureza psíquica legados por Mário Botas, com vários quadros, como as Máscaras, a evolução fetal de Tropa de Sousa, no quadro a que deu o nome de Mórula, o desenho de Miguel Salazar com o seu Voando sobre um Ninho de Cucos, ou o trabalho desse notável pintor e poeta que é Cabral Adão, com projecção internacional.
       Tratado o aspecto fulcral da actividade dos médicos em áreas tão diversas, vejamos agora o inverso: o interesse que os problemas médicos têm despertado em artistas não médicos, pintores, escultores, escritores, poetas. Passando rapidamente os nomes de Cornan Doyle, o célebre criador de Scherlok Holmes, de Axel Munthe, escritor que nos deixou o belo livro de S. Michele, de Chekov, criador de personagens inesquecíveis, foquemos os artistas portugueses, numa breve passagem, por ser impossível, em tão curto espaço de tempo, referir o que, por direito, merece horas de observação, estudo e encantamento.
       São famosos os frescos de Veloso Salgado, da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa e Malhoa deixou-nos, entre outros, um magnífico quadro a que chamou O Remédio, que se exibe no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto. Lá está estampada a ansiedade da mulher, filha, esposa ou mãe, com a garrafa do remédio sob o braço, em busca da salvação do seu ente querido. Eça de Queiroz deixou registado, n'O Primo Bazílio, a influência das cunhas no provimento das vagas de médicos, e David Mourão Ferreira, n'Um Amor Feliz foca a moda tão divulgada dos congressos, a caracterizar a Medicina dos nossos dias. Estas e outras obras devem merecer por parte dos médicos, um pouco, um mínimo de atenção.
       Neste breve resumo, é possível retirar algumas importantes conclusões. Dos trabalhos de Arte, Filosofia, Sociologia, enfim, da autoria de médicos pode concluir-se que a profissão tem dado ao país vultos dos mais destacados em cada uma destas áreas: o gigante Miguel Torga; António José de Almeida, Presidente da República; António Augusto da Silva Martins, pai do Dr. Gentil Martins, que todos conhecemos, considerado ainda hoje o atleta português mais completo, vítima de uma explosão da arma com que competia nos Jogos Olímpicos em idade precoce, são apenas alguns nomes a referir.
       No campo da Literatura, é possível caracterizar as várias fases da História da Literatura Portuguesa só com obras de médicos. Reconhece-se também que foram médicos os pioneiros de certos tipos de Literatura. Tal é o caso de Rodrigo Paganino, criador desse pequeno livro Os Contos do Tio Joaquim que iniciou a investida do conto literário em Portugal após três séculos de silêncio e foi também esta obra o rastilho para o tipo de escrita rural que outro médico, de pseudónimo Júlio Dinis, tão bem soube desenvolver.
       Do trabalho dos artistas não médicos, mas que dedicaram parte das suas actividades à Medicina podemos resumir o seguinte: as obras que legaram, sobretudo na Literatura e na Pintura, são o espelho da vida médica das épocas que referem. Na Escultura deixaram, sobretudo, bustos ou estátuas de médicos. Toda esta caracterização constitui um elemento de estudo e lição para os tempos modernos. Daí a importância da Historiologia. A título de exemplo, refiro um poema de João de Deus que caracteriza os hábitos sanitários da população portuguesa do seu tempo.

Mal de pés

Certo patrício nosso brasileiro,
Depois de ter corrido o mundo inteiro
Ao voltar de Paris desenganado
Dos médicos, que tinha consultado,
Achou-se num wagon com um inglês.
O desgraçado tinha mal de pés...
E a última palavra da ciência
Era ir vivendo e tendo paciência!

Mostrou-se o bife incomodado,
Fungando para um e outro lado...
Como quem busca o foco de infecção;
Diz-lhe o nosso infeliz compatriota,
A apontar-lhe com o dedo a bota
E exalando um suspiro de paixão:
— Eis a causa, senhor, eis o motivo!...
O que eu não sei é como ainda vivo!

Tenho gasto rios de dinheiro,
E sempre, sempre, sempre o mesmo cheiro!
E isto por ora vá!... mas alto dia
Quando aperta o calor... Virgem Maria!1...

"E diga-me: em lavando os pés refina,
Ou sente algum alívio?"
— Isso não sei,
Sei que tenho exaurido a medicina;
Mas lavar é que nunca experimentei.

Às vezes dá-se ao médico o dinheiro
Que se devia dar ao aguadeiro*.

in Campo de Flores, Satíricas e Epigramas.

1Expressão sem suporte bíblico... mas era o que ensinavam ao povo. EE
*Homem que no século XIX vendia água e carregava os respectivos potes até à morada do cliente.


Texto retirado da Revista da Ordem dos Médicos - Abril/Junho 2001