sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

“NÃO PERMITAS QUE TUDO TERMINE DESTA MANEIRA”



O hospital encontrava-se impressionantemente silencioso naquela fria noite de Janeiro, silencioso e calmo como o ar, antes de uma tempestade.
Eu estava na sala das enfermeiras do 7º andar e levantei os olhos para o relógio. Eram 9 horas da noite. Coloquei o estetoscópio em volta do pescoço e dirigi-me para o quarto 712, o último quarto do corredor. O quarto 712 tinha um novo doente, o Sr. Williams. Um homem sozinho. Um homem estranhamente silencioso acerca da sua família.

Quando entrei no quarto, o Sr. Williams olhou ansiosamente, mas logo baixou os olhos quando viu que só ali estava eu, a sua enfermeira. Pressionei o estetoscópio sobre o seu peito e ouvi. Forte, vagaroso, ainda batendo. Precisamente o que eu desejava ouvir. Nem parecia que ele tinha sofrido um ligeiro ataque cardíaco poucas horas antes.
Olhou para mim, do seu imaculado leito branco. “Senhora enfermeira, poderia...” Hesitou, com os olhos cheios de lágrimas. Já uma vez antes ele tinha começado a fazer-me uma pergunta, mas tinha mudado de parecer. Toquei na mão, aguardando. Ele limpou uma lágrima. “Poderia chamar a minha filha? Diga-lhe que tive um ataque cardíaco. Um ataque ligeiro. Sabe?... eu vivo sozinho, e ela é a única família que tenho.”

Subitamente, a respiração acelerou-se-lhe. Pus o oxigénio nasal a 8 litros por minuto. “Sem dúvida, vou chamá-la”, disse eu, estudando o seu rosto. Soergueu-se levemente com os olhos fixos em mim, com uma expressão de urgência no rosto.
“Poderia chamá-la imediatamente – o mais depressa possível?” Ele estava com uma respiração rápida – demasiado rápida. “Vou chamá-la antes de mais nada”, disse eu, afagando-lhe o ombro.
Apaguei a luz. Ele fechou os olhos, belos olhos azuis no seu rosto de 50 anos. O quarto 712 ficou praticamente às escuras, iluminado apenas por uma ténue lâmpada nocturna. O oxigénio borbulhava nos tubos verdes por cima da sua cama. Com relutância em sair, dirigi-me através do sombrio silêncio para a janela. As vidraças estavam frias. Em baixo um denso nevoeiro pairava sobre o parque de estacionamento do hospital.

“Enfermeira”, chamou ele, “podia trazer-me um lápis e um papel?” Tirei um pedaço de papel amarelo e uma esferográfica do meu bolso e coloquei-os sobre a mesinha de cabeceira. Voltei para a sala das enfermeiras e sentei-me junto do telefone. A filha do Sr. Williams figurava na sua ficha como sendo a pessoa mais próxima da família. Consegui saber o seu número telefónico e liguei. A sua ténue voz respondeu.
“Janie, daqui é Sue Kidd, enfermeira de serviço no hospital. Quero dar-lhe notícias do seu pai. Ele deu entrada esta tarde com um ligeiro ataque cardíaco e...”
“Não!”, gritou ela para o telefone, alarmada. “Ele não está a morrer, pois não?” “Por agora a sua situação é estável”, disse eu, procurando mostrar-me convincente. Silêncio. Mordi o meu lábio. “Não o deve deixar morrer!” disse ela. A sua voz era tão intimativa que a minha mão tremeu ao telefone. “Estamos a tratar dele com todo o cuidado possível.” “Mas talvez tenha dificuldade em compreender...”, desculpou-se ela.

“O meu pai e eu não nos falamos há quase um ano. Tivémos uma terrível discussão quando fiz 21 anos, a propósito do meu namorado. Então saí de casa... E nunca mais voltei. Durante todos estes meses tenho tido o desejo de voltar e pedir-lhe perdão. A última coisa que lhe disse foi: 'Odeio-o'."

A sua voz fraquejou e ouvi-a irromper em agonizantes soluços. Eu estava sentada, ao ouvi-la, com lágrimas queimando-me os olhos. Um pai e uma filha, tão perdidos um para o outro. Então pensei no meu próprio pai, a muitos quilómetros de distância. Fazia já tanto tempo que eu lhe tinha dito: “Amo-o!”

Enquanto Janie lutava por controlar as suas lágrimas, balbuciei uma oração: “Por favor, ó Deus, permite que esta filha encontre o perdão.” “Vou imediatamente. Estarei aí dentro de 30 minutos”, disse ela. Clique. O telefone acabava de ser desligado.

Procurei ocupar-me com uma quantidade de fichas que estavam sobre a mesa. Não era capaz de me concentrar. Quarto 712. Eu sabia que tinha de voltar ao 712. Para lá me dirigi à pressa. Abri a porta. O Sr Williams jazia imóvel. Peguei-lhe no pulso. Não havia a mínima pulsação. «Código 99. Quarto 712. Código 99. Urgente». O alerta soou por todo o hospital dentro de segundos. O Sr. Williams tinha tido um colapso cardíaco. Com rapidez eléctrica, curvei-me sobre a sua boca, expirando ar para os seus pulmões. Coloquei as mãos sobre o seu peito e comprimi. Um, dois, três. Procurei contar. Aos 15 voltei à sua boca e respirei tão profundamente quanto pude. Como ajudar? De novo comprimi e respirei. Comprimi e respirei. Ele não podia morrer! “Ó Deus!”, orei. “A sua filha está a chegar. Não permitas que tudo termine desta maneira”.

A porta abriu-se subitamente. Médicos e enfermeiras precipitaram-se para dentro do quarto, empurrando equipamento de urgência. Um médico empreendeu a compressão manual do coração. Um tubo foi inserido através da sua boca para ajudar a respiração. Enfermeiras mergulharam seringas de medicamentos nas suas veias. Liguei o monitor do coração. Nada. Nem sequer uma palpitação. O meu próprio coração batia forte. “Deus, não permitas que termine assim. Não em amargura e ódio. A sua filha está a chegar. Que ela possa achar paz”. “Desviem-se”, ordenou o médico. Passei-lhe o equipamento para o electrochoque ao coração. Aplicou-o sobre o peito do Sr. Williams. Tentámos repetidas vezes. Mas nada. Nenhuma resposta. O Sr. Williams estava morto. Uma enfermeira desligou o oxigénio. Um a um, médicos e enfermeiros saíram, tristes e silenciosos. Como pôde isto acontecer? Como? Mantive-me junto da sua cama, atordoada.

Um vento frio fustigava a janela, salpicando as vidraças com neve. Lá fora – por toda a parte – parecia um leito de trevas e frio. Como podia eu enfrentar a sua filha? Quando deixei o quarto, vi-a no corredor. Um médico que tinha estado dentro do 712 momentos antes estava ao seu lado, falando-lhe, afagando-lhe o cotovelo. Depois seguiu o seu caminho, deixando-a aniquilada contra a parede. O seu rosto reflectia um patético horror. Os seus olhos estavam assombrados. Ela sabia. O médico tinha-lhe dito que o seu pai tinha falecido. Estendi-lhe a mão e levei-a para a sala das enfermeiras.
Sentámo-nos em pequenas cadeiras verdes, sem dizer uma palavra. Ela fixou os olhos num calendário farmacêutico, com um semblante vítreo, quase parecendo prestes a quebrar-se. “Janie, tenho tanta, tanta pena”, disse eu. “Nada se pôde fazer”. “Sabe? Eu nunca o odiei. Amava-o". disse ela.

Deus, ajuda-a, por favor, orei em pensamento. Subitamente, dirigiu-se para mim. “Desejo vê-lo”. O meu primeiro pensamento foi: 'para que há-de sofrer mais? O vê-lo apenas agravará a situação'. Mas levantei-me e pus o braço ao redor dela. Percorremos vagarosamente o corredor até ao quarto 712. Junto da porta apertei a sua mão, desejando que desistisse de entrar. Mas ela empurrou a porta. Dirigimo-nos para a cama, ambas confusas, dando pequenos passos em uníssono. Janie inclinou-se sobre o leito, e ali sepultou o seu rosto.
Procurei não olhar para ela, neste triste, triste adeus. Desviei-me para junto da mesinha de cabeceira. A minha mão pousou sobre um pedaço de papel amarelo. Peguei nele e li: “Minha querida Janie, perdoo-te. Peço-te que também me perdoes. Sei que me amas. Também te amo. Teu pai”.

O papel estava tremendo nas minhas mãos quando o apresentei a Janie. Ela leu-o uma vez. Leu-o pela segunda vez. O seu rosto atormentado tornou-se radiante. A paz começou a brilhar nos seus olhos. Apertou o pedaço de papel contra o peito. “Obrigada, ó Deus”, murmurei, olhando para a janela. Algumas estrelas cristalinas cintilavam no meio da escuridão. Um floco de neve bateu na janela e derreteu-se, desaparecido para sempre. A vida pareceu-me tão frágil como aquele floco de neve na janela. Mas, graças, ó Deus, porque relações, por vezes frágeis como flocos de neve, podem ser de novo reatadas.

Mas não há um momento a perder. Saí furtivamente do quarto e dirigi-me à pressa para o telefone. Liguei para o meu pai – para lhe dizer: “Eu amo-o”.


«Desfaço as tuas transgressões como a névoa,
e os teus pecados como a nuvem;
torna-te para Mim,
porque Eu te remi.»
Isaías 44:22.>

Sue Kidd
Revista SAÚDE E LAR - Publicadora SerVir