quarta-feira, 19 de março de 2014

O FILHO DO MEU VIZINHO


Estamos no Outono. Tudo na minha aldeia respira serenidade, e o mesmo acontece com a estrada aonde o nosso caminho vai morrer. As crianças regressaram da escola; as mais crescidas e as mais pequenas; as principiantes para as quais a escola é motivo de assombro porque nada sabiam dela, e as mais adiantadas, as do ensino secundário, que já a conhecem por dentro e por fora e fervem de impaciência na antecipação do novo ano, em que têm de optar por um novo caminho, seja ele a carreira, a universidade ou o emprego.
No interior dos lares, nas quintas ou nas ruas, também os pais se sentem cheios de preocupações. O Verão trouxe-lhes um convívio mais íntimo com os filhos; daí um sentimento de orgulho, de vago sobressalto, de exasperação ou de esperança. Nunca houve para os pais época mais difícil do que esta em que vivemos. Todos conhecemos demasiadamente bem esta verdade: o mundo que os nossos filhos vão enfrentar não é aquele que, com a mesma idade, encontrámos. Por, isso, duvidamos da nossa aptidão para os ajudar. E eles, por seu lado, acham que os pais são pouco esclarecidos.
Existiu sempre nos jovens uma fase em que eles se sentem incompreendidos, enquanto a maturidade não se encarrega de os brindar com o estado de espírito comum a esta fase da vida e com a sensatez capaz de afugentar os miasmas. Contudo, os nossos filhos acusam, cada vez com maior intensidade, a dolorosa febre de uma independência crescente. Chegam afinal à seguinte conclusão: os pais e os professores não sabem o suficiente deste nosso mundo em rápida transformação para merecerem confiança; por isso, serão eles próprios - os jovens - quem se encarregará de apurar a autenticidade dos factos.

Conscientes deste afastamento, os pais leem os periódicos e ficam sabendo o que se passa com os filhos dos outros. Leem notícias acerca de rapazes - não crianças mas jovens - que dão em roubar, torturar e assassinar pessoas inocentes que nem sequer conheciam. E, afinal, muitas vezes não se trata de filhos de pais desonestos. Podem ser filhos de gente respeitável e trabalhadora que se esforça por construir para os filhos bons lares de ambiente aceitável. Esses pais recusam-se a acreditar que os jovens algemados pela polícia sejam os seus filhos.
- Foram sempre tão bons rapazinhos! - exclamam esses pais.
- Porque os deixaram andar a vadiar pelas ruas? - contrapõe a polícia. - Porque não trataram de apurar por onde andavam eles à meia-noite?
E os pais não sabem que responder. Quem conhece os adolescentes de hoje - não só os rapazes como igualmente as raparigas - sabe que não é fácil conseguir saber onde eles se encontram à meia-noite. Como não depositam confiança nos pais, não os respeitam. Afirmam a sua independência e pensam que dela faz parte andarem por onde lhes apetece. Que poderá fazer um casal de meia-idade quando um filho robusto e com um corpo já de homem, se recusa a obedecer? Que espécie de castigo poderá aplicar uma pessoa de idade a um jovem? Este ri-se das ameaças paternas e despreza toda e qualquer espécie de exortação.
- Não estou disposto a aceitar leis de ninguém - eis o que ouvi gritar a um jovem na casa de um excelente homem, seu pai e meu vizinho.
O rapaz, que mede cerca de um metro e noventa, largou de casa enquanto o pai ficava a olhar para mim.
- Que hei-de eu fazer? - perguntou, desanimado.
- Não faço ideia nenhuma - respondi eu, igualmente descoroçoada.
De regresso a casa, fiquei-me a reflectir na pergunta e na minha resposta. Conhecendo o pai como conheço, senti, ainda assim, pena do filho e, conhecendo este, achei-me do mesmo modo a lamentar o pai. Como foi possível que o filho do meu vizinho, que conheci quando ele era um bebé de caracóis a ensaiar os primeiros passos, se convertesse naquele rufião? Era, nessa altura, um bebé simpático; sorridente e afável. Hoje nada possui de simpático, e o seu sorriso, geralmente, não passa de uma careta de sarcasmo. Que terá acontecido? Os pais são criaturas simples e boas. A mãe tirou um curso secundário; o pai andou na escola técnica e ganha um bom ordenado como mecânico. Têm mais dois filhos: uma rapariga nos primeiros anos de um curso secundário e um rapaz mais novo. Também esses foram bebés sorridentes, mas também eles se encontram actualmente longe de ser crianças felizes. E, no entanto, o seu lar é bastante agradável e desfrutam daquele conforto que hoje se considera imprescindível. A família frequenta a igreja com certa regularidade, embora os filhos considerem essa mesma igreja mais como um centro social do que como uma fonte religiosa. A mãe nunca trabalhou fora de casa. Raramente vai a algum lado excepto à reunião mensal do seu clube; é boa cozinheira e excelente dona de casa. A família lê muito pouco, mas gostam de música popular e possuem um televisor que, de vez em quando, ocasiona discussões pois os pais não gostam de ver os filmes de violência que os filhos apreciam como espectáculo.
Que as crianças de hoje adorem cenas de violência - eis um facto significativo. É por albergarem na alma uma irritação de tal modo cravada lá no fundo que nem dão por ela. A sua ânsia é atingirem violentamente, mesmo que seja de forma indirecta, um mundo que os aterroriza. Eis o perigo! A juventude, quando feliz, adora a vida e a beleza.

Que haverá de errado em casa do meu vizinho? Quem quer que lá entre dirá que se trata de um lar extremamente agradável. Tudo o que em termos de mobiliário e de equipamento se considera digno de um lar ali se encontra, e o mesmo parece acontecer em relação aos pais e aos filhos. Mas, quando lá se permanece por algum tempo, invade-nos a estranha sensação de nos encontrarmos numa casa vazia. Verdadeiramente, nada ali existe de vivo, a não ser talvez a mãe na cozinha. Não sei por que motivo a casa me dá a impressão de vazia. Depois de reflectir um pouco sobre o assunto, parece-me que ela não se encontra integrada na corrente da vida dentro da comunidade, da nação e do próprio mundo. É uma espécie de ilha isolada, que luta pela sobrevivência nesta rápida maré de transformações. Mas nós - seres humanos - precisamos uns dos outros, quer dos vizinhos quer do nosso semelhante longínquo. O alheamento do indivíduo, ou da sua nação ou da sua raça, seja ele voluntário ou forçado, conduz a resultados perigosos. É-nos necessário alimentarmo-nos constantemente da corrente da vida humana: de outra forma, morreremos à sede.
A rebelião do filho do meu vizinho é inevitável e justa. Revolta-se - inconscientemente - e portanto com toda a sua energia - contra o jazigo que é a sua casa. Nada tem que fazer dentro dela. Ah, sim, há certos trabalhos, mas porque esforçar-se em proveito de uma sepultura? Que sentido tem para ele manter limpo o carreiro de casa, lavar janelas ou varrer a cave? Tudo isso não passa de partes da mesma sepultura.
Já lhe interessa lavar o carro e até passar um ou dois dias a tratar dele porque num carro existe vida. Pode até levá-lo para longe de casa. Mas dentro desta tudo se mantém, tanto quanto ele se lembra, imutável. Em vinte anos, o pai não mudou de maneira de ser nem de opinião, e vinte anos para o rapaz representam uma vida. A mãe, essa fala pelos cotovelos mas não tem, na opinião do filho, ideias para além do custo da vida e do desejo de ter um frigorífico novo que o pai não lhe pode comprar. O filho é demasiado jovem para compreender a singela sabedoria da filosofia paterna e a atitude concordante da mãe.

Descobriram os pais que uma taça só pode receber o que nela caiba. E uma chávena de cozinha e uma chávena de vida são a mesma coisa. Só contêm aquilo que podem conter. Os pais contentaram-se com o que têm. É, afinal, uma modalidade de sabedoria. Chamem-lhe resignação se assim o entenderem.
Mas os jovens não se podem resignar, a não ser que os tenham magoado ou deformado. Recusam-se a acreditar que a vida, não seja mais do que o conteúdo de uma taça. Tem de haver mais lá fora, em qualquer sítio, que não em casa. Há-de haver alegria, paz, segurança, camaradagem, compreensão e comunhão de ideias. Se assim não fosse, de que valeria nascer? E os jovens têm razão. É que também eles possuem a sua sabedoria.
Nesse dia, o meu vizinho viu aquele filho, tão alto e tão forte, saltar para dentro do carro da família e afastar-se a toda a velocidade. Li-lhe nos olhos um desânimo gelado e no rosto um profundo desespero.
Eis o que me disse então o meu vizinho:
- Devíamos tê-lo mandado para o Exército aos dezasseis anos.
Protestei contra semelhante abdicação.
- Oh, não diga isso! Isso significa que não sabemos construir um mundo que tanto sirva para os novos como para os velhos.
- Fiz quanto pude - tornou ele. E, voltando costas, entrou em casa e fechou a porta.
Aquela casa encontra-se realmente vazia, e eu não censuro o filho por saltar para dentro do carro e se afastar dali. Contudo, sei que o meu vizinho tem razão quando afirma ter feito quanto lhe foi possível. Encontra-se a braços com uma tarefa de tal modo gigantesca que não existe homem capaz de a realizar.

Toda a comunidade deverá ajudar os pais neste problema dos filhos e das filhas. Os professores não se podem limitar a ensinar nas escolas; os pregadores, a salvar almas; a polícia, a prender os delinquentes; os pais citadinos, a ocupar-se simplesmente dos problemas da cidade. A todos eles cumpre unirem-se para ajudarem os pais a modelarem os filhos.
Nos países antigos, em que a unidade social é uma grande família, em que os avós e os pais, tios, tias e primos vivem todos juntos e funcionam como uma comunidade, as crianças pertencem a todos. A comunidade familiar é, em si própria, o fluxo da vida, que vai desaguar na nação e no mundo. Mas, duas pessoas que lutam pelo sustento diário, na nossa sociedade altamente competitiva e numa época flutuante, não podem, simultaneamente alimentar, vestir, educar, treinar e inspirar uma família de crianças irrequietas e cheias de vida.
Não há dois pais que possuam força para tanto. E quando digo educar, refiro-me à educação nos seu sentido mais lato, pois aquilo de que os professores dispõem para ensinar a criança é muito pouco, comparado com o que os pais, se forem conscienciosos, lhe podem ensinar.

Na China pré-comunista, por exemplo, as responsabilidades do professor eram muito maiores do que entre nós. Quando um pai levava um filho à escola, dava-o em certo sentido ao professor. Dizia-lhe, efectivamente: "É seu, não só para que o ensine mas também para que faça dele um homem honesto." Os professores compartilhavam com os pais a responsabilidade de formar o carácter dos jovens. Além disso, também a memória dos antepassados ajudavam os pais. Os preceitos passavam de geração em geração e eram respeitados pelos jovens e pelos velhos, e o filho obedecia à memória dos seus antepassados mortos como se curvava perante os avós e os pais vivos.
Se o meu vizinho tivesse vivido na velha China, disporia de vintenas de pessoas para o ajudar a educar o filho, o qual haveria de sentir-se então ligado a todos e, por esse facto, parte integrante da corrente da Humanidade. Em vez disso, o meu vizinho, tem de lutar quase sozinho, pois conta apenas com a perturbada ajuda da mãe do rapaz e com o interesse intermitente da igreja e da escola. Claro que sinto muita pena do meu vizinho, pois ninguém o ensinou a ser pai. Passou anos a aprender o ofício de mecânico. E, contudo, dessas duas ocupações, é a paternidade a mais difícil e importante.
Quanto à mãe, o que menos importa dentro da função maternal é cozinhar e governar a casa. E ninguém ajuda estes pais, nem os mortos nem os vivos. Contudo, há quem os censure pelos actos do filho. E, apesar da sua perturbação e sensação de derrota, continuam com as suas tentativas.

Claro que o rapaz está fora da razão quando despreza os pais e os considera incapazes de o ajudarem. Não faz ideia alguma de como eles se sentem atormentados ao pensarem nele, e quanto lhe querem. Também é certo que não espero encontrar tamanha sensibilidade nos rapazes e raparigas de hoje. Esta nossa época está longe da sensibilidade, tantas foram as atrocidades que nos endureceram. Contudo, um filho deve a si próprio o ser delicado e cooperante em relação aos pais, isto ainda que não os ame e respeite. Ao proceder malcriadamente, ao negar colaboração aos pais, está a ser desleal para consigo próprio. Mas - ao que parece - ninguém se deu ao trabalho de lhe ensinar tais coisas. Além disso, ele não sabe que o sentimento pode-se seguir à acção ou que a acção se deve basear em princípios e não em sentimentos.
- Então sou obrigado a dizer que estou arrependido quando não estou? - perguntou-me, certo dia, um dos meus filhos depois de ter procedido mal para com a irmã mais nova.
- Claro que deves dizer que estás arrependido, quer o estejas quer não - respondi. - Tens de proceder bem, seja qual for a tua maneira de sentir. Não podes forçar-te a sentir o que não sentes, mas podes proceder bem sintas o que sentires. E vais ficar admirado quando, por te teres habituado a dizer que estás arrependido, acabares afinal por lamentar sinceramente o que tiveres feito.
Pela minha parte, aprendi este preceito há muitos anos quando era criança e o meu mestre, um velho altamente sabedor, não pertencia nem à minha raça nem à minha religião. E durante toda a minha vida o achei sempre verdadeiro.
Tendo actuado sem delicadeza ou respeito para com o pai, que prazer sentirá o filho do meu vizinho durante a tarde em que se ausentou, esteja ele onde estiver? Vai descendo a rua a toda a velocidade, envolto num torvelinho de poeira, e o meu coração acompanha-o, pois receio bem que ele não vá encontrar aquilo por que realmente suspira: a integração na corrente da vida humana. Vai passar a tarde no campo de futebol e, depois, com os amigos a quem ele chama "a malta", encaminha-se para a garagem, actual substituta da loja da aldeia ou dos bares da cidade, onde se falará dos golos do jogo, da vontade de continuar com os estudos secundários ou de desistir dos mesmos, das fitas que tencionam ver, das raparigas suas conhecidas, dos empregos em que o serviço é mais fácil e mais susceptível de os manter afastados da obrigação de matar homens que nunca viram.

É um facto promissor, este de a maior parte dos jovens não querer matar. Sim, quanto a isso, eles continuam relutantes. Não acredito que esses rapazes da notícia que hoje li no jornal da manhã, que vagabundeavam pelas ruas da cidade, espancando, torturando e matando gente que nem conheciam, desejassem realmente praticar crimes semelhantes. Matar o próximo não está na natureza do homem. Esses rapazes já não podiam certamente aguentar o aspecto cruel do mundo à sua volta e, no desamparo da sua juventude, tentaram agarrar o que eles supunham ser a vida.
Se, algum dia, têm de ser arrastados para a violação de todos os instintos naturais, então que seja agora. Queriam a vida fosse como fosse. Podia essa ânsia ter assumido outro aspecto - o de salvar vidas - se alguém lhes tivesse mostrado que, mesmo hoje em dia, pode continuar a subsistir uma possibilidade ardente de paz e de boa vontade.
No cérebro desses adolescentes trágicos não houve raciocínio consciente elaborado: na sua ignorância, confundiram a morte com a vida. O que devemos temer é o raciocínio absurdo provocado pelo desespero do jovem que julga não poder escapar ao que prevê; teme e odeia e, por esse motivo, precipita-se ao encontro do que o atormenta. E, ao olhar para trás, sabe que não encontra refúgio no seu passado de criança.

O filho do meu vizinho foge da casa vazia da sua infância, mas - pobre dele! - o campo de futebol, a garagem, o cinema e até a rapariga com quem saiu algumas noites e logo abandona, porque ela não lhe satisfaz nem o espírito nem a alma (os quais, conquanto ele o ignore, significam mais para ele do que o corpo); todas essas derivantes são igualmente vazias, pois também elas se encontram afastadas da impetuosa corrente da vida neste mundo.
É que eu acredito no seguinte: o filho do meu vizinho sabe instintivamente que existem coisas importantes a realizar neste mundo, na sua nação e até na cidade próxima, coisas que o interessam e entusiasmam, e sente latejar no seu íntimo um vago, cego desejo de se lançar em qualquer acção importante, e por isso mesmo capaz de lhe despertar o interesse e o entusiasmo. A sua necessidade é a que todo o indivíduo sente de ser necessário e portanto essencial.
E como cheguei a semelhante conclusão? Certo dia, andava eu a passear à tarde pela mata que fica mesmo ao fundo da minha quinta, quando ouvi um som de soluços. Pus-me a escutar. Era um homem quem soluçava; um jovem, cuja voz se quebrava com o choro. Fui-me guiando pelo som até que, num pequeno vale, dei com o filho do meu vizinho, sentado num tronco, de cabeça entre as mãos.

- Aconteceu-te alguma coisa? - perguntei-lhe.
O som da minha voz provocou-lhe um sobressalto. Tentou esconder o rosto.
- Não é nada - disse.
Procurou o lenço e, não o achando, enxugou os olhos à fralda da camisa.
- Claro que se trata de alguma coisa - tornei eu - mas, se não me queres responder, não te pergunto mais nada.
- Trata-se de um assunto pessoal - respondeu.
- Os aborrecimentos são sempre pessoais - comentei. Também já os tenho tido. Sei como é.
Sentei-me no outro extremo do tronco e fiquei-me à espera. Era o fim de um lindo dia de Outono; o ar estava quente; o céu, límpido, e as árvores pareciam arder.
- Não sei explicar ao certo o que é - tornou ele por fim. - Sinto-me como que arrastado por aí...
- E quem é que te arrasta? - perguntei. Os pais eram inegavelmente brandos; mais do que isso: tolerantes.
- Oh, tudo; é assim como...
- Não existe nada por que verdadeiramente te interesses? - sugeri.
- É isso mesmo - concordou.
- Ou - tornei eu - ou ainda não descobriste o que realmente queres fazer e não sabes a que te hás-de agarrar?
- Suponho que é isso - respondeu contra vontade. E, desviando o olhar da minha pessoa, acrescentou:
- Bem, tenho de ir andando...
- E eu também - disse, erguendo-me da minha ponta do tronco. - Quero simplesmente dizer-te o seguinte: espero que não desistas de procurar o que realmente desejas fazer na vida. Garanto-te que o mundo é um lugar imenso e maravilhoso, muito mais do que possas imaginar, e certamente existe qualquer coisa que hás-de gostar de fazer, e pessoas que necessitam desesperadamente do que tu possas fazer por elas. Continua a olhar à tua volta e tem paciência contigo próprio.
- Fixe!
Baixou a cabeça e afastou-se, embrenhando-se na mata enquanto eu ia caminhando para casa. A própria pobreza das suas expressões denunciava o seu desassossego íntimo e certamente contribuirá para lhe aumentar a frustração. Não conseguia explicar-se por falta de vocabulário, e semelhante carência esmaga-lhe por assim dizer o turbilhão dos pensamentos. "É assim como... Suponho que sim... Fixe!" Expressões como estas constituem o vocabulário tipo carimbo da maior parte da nossa gente moça.
Mas, na sua autenticidade, aquele sofrimento corresponde ao anseio universal do homem de pertencer a algo maior do que ele - o de ser indispensável ao seu semelhante e apreciado como indivíduo.

Verifico que os nossos jovens americanos sofrem mais profundamente do que os jovens de outros países do convencimento da sua inutilidade. Prolongam-lhes a infância até que ela se converte num vácuo dentro do qual despejam desportos, diversões, vagabundagem, escapadelas, tudo actividades inofensivas e vazias e todas elas incapazes de substituir o trabalho em que a alma se compraz, no ponto mais alto da corrente humana. Ninguém pode tornar-se adulto e achar satisfação em si próprio se não possuir a consciência de que anda a contribuir com a sua quota-parte para o crescimento, expansão e desenvolvimento da raça humana.
Nunca ao filho do meu vizinho ensinaram esta verdade tão simples e tão profunda; por isso, ele se sente só e vai para a mata chorar sem saber porquê. Deus queira que a não venha a aprender demasiado tarde. Oxalá a sua existência venha a ser mais ampla do que uma taça mal cheia. No entanto, devia ter começado a aprender há muito, quando era ainda um rapazinho sorridente de cabelos encaracolados. Desperdiçámos-lhe a juventude e a força, tal como desperdiçamos tantos dos nossos jovens.
Todas as vilas, cidades e campos desaproveitam os seus jovens. Porque ficará tanta coisa por fazer? Porque os nossos filhos não se encontram relacionados com a vida. Vivem num mundo infantil que já os aborrece e contudo ainda não sabem como sair dele. Eu não acredito num mundo infantil. É um mundo imaginário. Creio que se deve ensinar à criança - e o mais cedo possível - que o mundo inteiro é o seu mundo; que o adulto e a criança partilham esse mesmo mundo e que todas as gerações são necessárias à consonância do mesmo.

- Se eu fosse presidente da câmara municipal de qualquer vila, empenhar-me-ia em que até as crianças que frequentam a instrução primária soubessem que eram cidadãos e que, nessa qualidade, possuíam deveres a cumprir. Não se lhes concederiam privilégios, mas possuiriam direitos. Os seus primeiros deveres seriam relativos ao bem-estar comum. Não receberiam, em circunstância alguma, compensações monetárias ou qualquer outro tipo de recompensa quando cumprissem os seus deveres, e uma parte destes constituiriam em estudarem a matéria de fazer progredir a sua terra, e as suas opiniões seriam séria e devidamente ponderadas.
- Se eu fosse presidente da câmara de qualquer vila, levaria até os alunos da primeira classe a conhecerem os nomes dos nossos cidadãos mais notáveis e meritórios e a reconhecerem as virtudes dos homens e das mulheres que fossem bons cidadãos. Considerá-los-ia responsáveis em qualquer parte pela conservação dos museus, monumentos e edifícios públicos. Levá-los-ia a compenetrarem-se de que era do seu dever cooperar com a polícia. Esta é a protectora da gente honesta, mas, na sua missão de servidora do público, não deve agir de forma cruel e tirânica, abusando do poder que lhe é outorgado pelos cidadãos pagadores de impostos.
- A responsabilidade destes cidadãos-crianças aumentaria com o nível etário. Quando perfizessem os doze anos, deveriam conhecer o governo da sua terra ao ponto de lhes ser possível analisar a reputação de um homem ou de uma mulher que se apresentasse a desempenhar funções públicas, porque elas saberiam o que essa pessoa teria realizado como personalidade e como membro do governo. Pais e professores deveriam responsabilizá-los por esse conhecimento, facultando-lhes ao mesmo tempo os meios necessários à aquisição de tais conhecimentos. E dever-se-ia dar às crianças uma forma legal de exprimirem a sua opinião por meio de um voto graduado.

Não creio que o filho do meu vizinho, a fazer parte integrante do pequeno rio da vida da sua terra natal, se internasse pela mata a chorar por se sentir desamparado. A responsabilidade gera o respeito; por isso, quando a gente nova assume responsabilidades, merece o nosso respeito. Magoa-me profundamente ver os jovens da nossa terra tão pouco respeitados.
Amamos os nossos filhos e inundamo-los de privilégios; estragamo-los de mimos; vestimo-los com belas roupas, dotamo-los de carros velozes, segundo o conceito egoísta de que os filhos são propriedade dos pais.
"O filho é meu, não é? Portanto, não tem nada a ver com isso." Mas não sabemos respeitar os nossos jovens na sua qualidade de seres humanos e de indivíduos. Os jovens americanos, muito ao contrário do que geralmente se pensa entre nós e no estrangeiro, sofrem quase todos de um profundo complexo de inferioridade. A sua bombástica vulgaridade ou o seu alheamento negativo são indícios de falta de confiança neles próprios. E quem poderá censurá-los por não se auto-respeitarem quando não são respeitados pela sociedade? O respeito dos outros é a fonte do respeito próprio e, para uma criança, o respeito que por ela possam ter é a primeira atmosfera favorável ao seu desenvolvimento.

A minha compaixão continua a ter por objecto o filho do meu vizinho. Quase não o ajudaram a crescer. Aos dezoito anos, os seus divertimentos continuam a ser infantis, monótonos e destrutivos e, no entanto, são os únicos que lhe têm facultado. Quase não lê, pois na verdade é pouco dado às letras, apesar dos seus anos de escolaridade, e, por isso, ignora que a nata do pensamento humano encontra-se entre as capas dos livros. Em compensação, lê histórias em quadradinhos e uns outros tantos tristes jornais humorísticos.

Lembro-me de que, uma vez, a minha mãe se recusou a ler uma certa revista, então muito popular, por a considerar autêntico lixo. Se o era, realmente, confesso que não me lembra. E isso possuía tão pouca importância nessa altura como agora.
Em compensação, o que ela então afirmou era tão importante que eu nunca mais esqueci. Eis as suas palavras: "Sou tão incapaz de pôr lixo no meu espírito como de o pôr na boca." Foi aquela a sua maneira de exprimir um velho e sábio dizer da Bíblia: "Pelo pensamento de um homem se conhece a sua qualidade."
O espírito converte-se num esgoto se lhe dão unicamente imundícies. Se, em nome da liberdade, consentimos que a onda da imundície, do homicídio, do crime em geral, da violência e da fantasia absurda invada continuamente o espírito dos nossos filhos, então, em nome da liberdade, teremos de lutar com todas as nossas forças para contrariar a onda do mal com a poderosa vaga do bem.
Sou contra o sofisma que afirma dependerem o bem e o mal, na pessoa, dos padrões da sociedade a que se pertence. O bem e o mal podem ser universalmente definidos na sua base essencial, e assim serem ilustrados através das pessoas em qualquer parte do mundo. Nos muitos países em que tenho vivido e viajado, impressionou-me a descoberta de que um bom ser humano de um determinado país é considerado como um bom ser humano em qualquer outro. Sabemos instintivamente, seja qual for o local do nosso nascimento, o que é o bem e o que é o mal, mas os nossos instintos podem não saber distinguir a diferença entre um e outro. Suponho que o filho do meu vizinho anda confundido e nisso constitui parte da sua perturbação. Alimentaram-no com má comida, quer mental quer espiritualmente, e, entretanto, o corpo foi-se-lhe enchendo de excelentes produtos alimentares e de vitaminas. Pouco esperavam dele, e essa mesma pobre expectativa acabou por limitá-lo.
Não sou a favor da severidade, mas creio na inexorável exigência da responsabilidade que se deve pedir aos cidadãos de todas as idades e na privação de direitos, se não em castigos, quando cada um não cumpre o seu dever. Precisamos de restaurar o significado total desta velha palavra - dever. É o reverso da medalha dos direitos. Cada um de nós contrai um dever para com os outros seres humanos, e o justo cumprimento desse mesmo dever assenta no de cada um para com a sua própria pessoa. Também não é por meio da disciplina que levamos os outros ao cumprimento do dever. Há um vazio que tem de ser preenchido nas vidas dos jovens, e a disciplina em si própria é um meio negativo, uma proibição e não uma realização.
Temos de ensinar aos nossos jovens o seguinte: eles nunca serão felizes enquanto não ingressarem no mais profundo do rio da vida. E então, graças aos meios maravilhosamente compensadores de que a vida dispõe - a paz e a felicidade quando não procuradas por elas próprias apenas - insinuar-se-lhe-ão nos espíritos através das portas do dever cumprido. O dever não é uma coisa odiosa, enfadonha ou destrutiva. O dever cumprido é algo de compensatório, de agradável e de reparador para a alma, e o seu fruto chama-se serenidade. Oxalá que o filho do meu vizinho se encontre ainda a tempo de chegar a esta conclusão.

Pearl S. Buck in Para as Minhas Filhas Com Amor, Edição "Livros do Brasil", Lisboa, 1975 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Pearl_S._Buck

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