quinta-feira, 8 de abril de 2010

SÓ DEUS É REI


- Viva o rei para sempre!
Eram estas as primeiras palavras que todos os homens do país haoussa deviam dizer, sem se enganar, segundo os costumes sagrados, sempre que comparecessem na presença do seu soberano.

Ora, à sombra da árvore de vasta folhagem onde esse senhor do reino recebia todas as manhãs o seu povo apareceu um dia um homem alto e de aspecto calmo que ousou saudá-lo com estas palavras:
- Só Deus é rei.
No mesmo instante ergueu-se um murmúrio escandalizado entre os cortesãos de vestes levemente esvoaçadas pela brisa. O rei não se atreveu a irritar-se. Sorriu, levantou a mão para impor silêncio e pediu ao audacioso que repetisse o cumprimento, estendendo o ouvido e torcendo o nariz, como se tivesse escutado mal.
- Só Deus é rei - repetiu o homem, impassível e firme.
Então o rei sentiu-se cruelmente ferido no seu orgulho, mas não deixou que tal transparecesse. Respondeu:
- Homem, a tua insolência é de louco ou de herói. Quem és tu?
- Um camponês do teu país. Cultivo a minha terra na orla da cidade e apenas ambiciono alimentar convenientemente a minha mulher e os meus filhos durante o tempo que me for concedido para viver.
- Mereces a minha consideração e a minha confiança - disse o monarca.
Tirou do dedo um anel de ouro cinzelado, estendeu-lho e acrescentou:
- Confio-te este sinal da minha realeza, que os meus inimigos tanto cobiçam. Guarda-o preciosamente, porque, se o perderes, deverás pagá-lo com a tua vida. Que seja assim honrado aquele que não tem outro rei senão Deus.

O homem saudou-o e voltou para casa com o anel no seu punho cerrado.
Uma semana mais tarde o senhor do reino mandou-o chamar. Tiveram dificuldade em arranjar-lhe lugar diante do trono.
- Tenho uma missão a confiar-te - disse-lhe. - Preciso de pedreiros e artífices habilidosos para construir a nova muralha da minha cidade. Visita todas as aldeias do país, mesmo as mais distantes, e traz-me os homens de que careço.
Aquele que era agora conhecido pelo povo por SÓ-DEUS-É-REI voltou nesse instante para casa, escondeu num chifre de carneiro o anel real que lhe fora confiado e disse à mulher:
- Tenho de partir em viagem. Na minha ausência, toma conta deste objecto. Que te seja tão querido como a minha própria vida.
Beijou-a, apertou os filhos nos braços, depois montou no burro e partiu.

Mal saíra da cidade, o rei enviou, em segredo, um mensageiro a casa da mulher de SÓ-DEUS-É-REI. Esse homem, de olhar resplandecente, ofereceu à esposa receosa mil conchas pelo chifre de carneiro onde estava o anel. Com as mãos trémulas e o coração palpitante ela empurrou-o. Então ele abriu diante dela três cofres cheios de roupas magnificamente tingidas e tecidas a fio de ouro. Ela levou-as ao rosto, inspirou o seu perfume, vestiu-as, contemplou o seu esplendor num espelho de cobre, fechou os olhos e apontou a viga da casa, em cujo vão estava escondido o chifre. O mensageiro levou-o apressadamente ao seu amo. Logo que o rei teve na mão o anel, deu uma gargalhada e resmungou maliciosamente:
- Façam-me um anel novo e deitem este no lago mais profundo do país.
Dois servidores partiram imediatamente a correr e fizeram o que lhes fora ordenado.

No caminho de regresso Só-Deus-É-Rei e a sua equipa de pedreiros pararam uma noite numa aldeia de pescadores onde lhes ofereceram tantos frutos e bebidas fortes, tantos cantos e risos, que decidiram ficar por alguns dias entre essa gente de bem antes de enfrentarem a savana rude que os separava da cidade real. No dia seguinte acompanharam os homens à pesca, donde voltaram ao crepúsculo com as redes pesadas e escorrendo água.
Quando alinharam os peixes sobre o grande leito de folhas verdes no centro da praça, um ainda se mexia. Tinha um tamanho que se impunha e era cintilante como as águas de um lago sob as chamas do sol-poente. Uma criança agarrou-o, pegou na faca do pai, baixou-se e abriu o ventre do animal, como via os outros fazerem. Então de entre as entranhas apareceu uma anel brilhante. Na ponta da faca, a criança, espantada, estendeu-o a Só-DEUS-É-REI, que se encontrava próximo. Este examinou-o e, com os olhos inflamados e a boca aberta, reconheceu o anel que o rei lhe havia confiado. Tinha sido lançado naquele lago. Um peixe engolira-o. A criança segurava-o agora na mão. SÓ-DEUS-É-REI deu uma gargalhada. Nessa noite festejou com a alegria desabrida de um miraculado.

Alguns dias mais tarde os viajantes chegaram à cidade real. SÓ-DEUS-É-REI, regressado a casa, beijou a esposa e perguntou-lhe pelo chifre de carneiro. Ela respondeu-lhe que um rato o havia roído, e engolido, sem dúvida, o anel. Franziu o sobrolho, com as mãos nas ancas. Mal ela se escapou para a rua, temendo a cólera do esposo, apareceram quatro guerreiros da guarda do palácio. Conduziram o homem junto do monarca, que saudaram em voz alta logo que entraram na sala do trono:
- Viva o rei para sempre!
- Viva o rei para sempre! - repetiram, em coro, os cortesãos reunidos.
O rei mandou-os calar com um gesto impaciente, fez sinal para que avançasse aquele que tinha ferido o seu orgulho e pediu-lhe o anel de ouro. Este enterrou a mão no grande bolso do seu traje e estendeu-lho, dizendo:
- Na verdade, só Deus é rei.
O monarca soltou um murmúrio de admiração, suspirou e respondeu, abanando a cabeça:
- Homem, tens toda a razão. Só Deus é Rei.

Dividiu então o reino em duas partes iguais e ofereceu uma delas a SÓ-DEUS-É-REI, cujo nome se tornou tão caro ao coração dos Haoussas que ainda hoje se divertem a escrevê-lo nas traseiras dos camiões, autocarros e barcos de pesca para que seja espalhada aos quatro ventos esta história estranha e verdadeira, sem a qual a vida não seria digna de confiança.

Henri Gougard
A ÁRVORE DOS TESOUROS - lendas do mundo inteiro.