terça-feira, 20 de abril de 2010

AS DUAS PEÇAS DE OURO



Quando os meus quinze contei, um tio velho que eu tinha,
Qu´inda choro e chorarei toda inteira a vida minha,
Disse-me um dia:— «Olhe cá! Está quase um homem já!
Para que por tal o tomem, quero fazer-lhe um presente,
Com que um homem...
Com que um homem se apresente.»

Julguei, n'esta oração toda, que o tal quase sobejava,
E sondei o beiço em roda a ver se o buço apontava.
Estranhara o tratamento! E o programa, que um portento
No tom me estava a indicar, fez-me, logo à introdução,
Palpitar...
Palpitar o coração!

Fiquei-me desvanecido, e aprumando-me vaidoso,
Ouvi, meio distraído, entre ufano e curioso,
O longo fim do sermão. O bom do meu tio então,
Acções juntando a promessas, deu-me, para meu tesouro,
Duas peças...
Duas peças novas de ouro.

Esquecendo a gravidade, e o valor que este incidente
Outorgara à minha idade, dei dois pulos de contente.
As peças mirei de perto; e não trocava de certo,
Desdenhando régias sinas, o meu erário infantil
Pelas minas...
Pelas minas do Brasil!

A cismar no que faria de tão grosso cabedal
Passei o resto do dia, e de noite dormi mal.
No meu sono, a cada instante, via um grupo fulgurante
De efígies tais, que não sei quem as tivera inventado.
E sonhei...
E sonhei que era morgado.

Apenas rompeu a aurora, posto a pé antes do sol,
Quis tomar, por ali fora, os meus desejos a rol.
Ai, que diversos e quantos! Eram tantos, tantos, tantos,
Que lhes não achava o fim. O mundo tinha um defeito:
Para mim...
Para mim era inda estreito.

Meditava seriamente se faria a aquisição
D'um relógio com corrente, ou d'um cavalo rabão.
Como escolhesse o cavalo, entrei logo a ajaezá-lo.
Mas... mas o relógio... Aqui, pensando com mais estudo,
Resolvi...
Resolvi-me a comprar tudo.




Era no campo. Ao sol posto (já fresca outoniça aragem
D'um dia depois de Agosto ciciava entre a folhagem),
Fui ao moinho do outeiro, onde o Domingos moleiro,
Porque às vezes me deixara trotar do seu macho em cima,
Conquistara...
Conquistara a minha estima.

De o deslumbrar d´aparatos a pia intenção levava;
Mas fui achá-lo nos tratos d'uma terçã que o prostrava.
Cessara o motim festivo: solitário e semi-vivo,
Jazia o triste no chão, com as faces amarelas
N'um montão...
N'um montão de rotas velas!

Chamei-o: nem respondia; busquei: tudo lhe faltava.
Quando eu aflito saía, a pobre moleira entrava.
Vinha de lidar chorando, negro pão de dois penando.
Em tal desanimo e dor, tirando a peça primeira,
Fui-lh'a pôr...
Fui-lh'a pôr à cabeceira.

Que nunca ninguém se esqueça da alheia tribulação!
Tinha saudades da peça, mas tinha orgulho da acção.
Ficara aos sonhos metade entre os braços da piedade.
Vago e ufano como um rei, bem que no caso a cismar,
Caminhei...
Caminhei para o Lugar.

Um pardieiro, entre rosas, havia do Povo à entrada,
Junto às ruínas musgosas d'uma ermida derrocada.
Vivia n'esta casinha a ti´Ana — uma velhinha
Que sabia muita história, e m'as contava ao serão,
Co'a memória...
Co'a memória da afeição.

Em versos, um tanto baldos, modulava-me ela ainda
As trovas de Dom Reinaldos e o romance de Florinda.
Fugia a noite apressada, ao sabor d'essa toada,
Em tão suspenso escutar, que o meu sentido primeiro
Foi chegar...
Foi chegar a cavaleiro.

Uma vaquinha leiteira
Alvas malhas, pêlo nédio,
Era a sua companheira e também o seu remédio.
Conhecia-lhe a canção e vinha comer-lhe à mão,
Quando não pascia à porta. Chego, e a fala me abandona!...
Vejo-a morta...
Vejo-a morta aos pés da dona!

Dera-lhe o mal de repente; para morrer ali fora.
Meigo o olhar inteligente inda carinhos implora!
A pobre velha, coitada, sem voz, trémula e parada,
Olhava, olhava também, como quem na dor que encerra
Mais não tem...
Mais não tem quem ver na terra.

Nada disse. Que diria? Há desgraças tão completas,
Que da própria simpatia são as vozes indiscretas.
A velha não se moveu... E chorava!... E chorei eu!...
Que havia determinar, em miséria tão expressa,
Senão dar...
Senão dar-lhe a outra peça?

Puz-lh'a, mudo, no regaço; e volvi a passos lentos,
Apagando, n'um só traço, desejos com sentimentos!
Senti o fausto perdido: mas não foi de arrependido!...
Dissipada já deixava a fantástica opulência,
Mas levava...
Mas levava a consciência!


Mendes Leal