domingo, 27 de janeiro de 2013

TODOS FILHOS DE DEUS
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TODOS IRMÃOS



A população global judia é de aproximadamente 14 milhões, cerca de 0,02% da população do mundo.
ESTES RECEBERAM OS SEGUINTES
PRÉMIOS NOBEL
:

LITERATURA:
1910 - Paul Heyse; 1927 - Henri Bergson; 1958 - Boris Pasternak; 1966 - Shmuel Yosef Agnon; 1966 - Nelly Sachs; 1976 - Saul Bellow; 1978 - Isaac Bashevis Singer; 1981 - Elias Canetti; 1987 - Joseph Brodsky; 1991 - Nadine Gordimer Mundial; 2002 - Imre Kertesz; 2004 - Elfriede Jelinek;

(e ANNE FRANK se a tivessem deixado VIVER)

PAZ:
1911 - Alfred Fried; 1911 - Tobias Michael Carel Asser; 1968 - René Cassin; 1973 - Henry Kissinger; 1978 - Menachem Begin; 1986 - Elie Wiesel; 1994 - Shimon Peres; 1994 - Yitzhak Rabin; 1995 – Joseph Rotblat;
(e OUTROS se os tivessem deixado VIVER)

MEDICINA:
1908 - Elie Metchnikoff; 1908 - Paul Erlich; 1914 - Robert Barany; 1922 - Otto Meyerhof; 1930 - Karl Landsteiner; 1931 - Otto Warburg; 1936 - Otto Loewi; 1944 - Joseph Erlanger; 1944 - Herbert Spencer Gasser; 1945 - Ernst Boris Cadeia; 1946 - Hermann Joseph Muller; 1950 - Tadeus Reichstein; 1952 - Selman Abraham Waksman; 1953 - Hans Krebs; 1953 - Fritz Albert Lipmann; 1958 - Joshua Lederberg; 1959 - Arthur Kornberg; 1964 - Konrad Bloch; 1965 - François Jacob; 1965 - Andre Lwoff; 1967 - George Wald; 1968 - Marshall W. Nirenberg; 1969 - Salvador Luria; 1970 - Julius Axelrod; 1970 - Sir Bernard Katz; 1972 - Gerald Maurice Edelman; 1975 - Howard Martin Temin; 1975 - David Baltimore; 1976 - Baruch Blumberg S.; 1977 - Roselyn Sussman Yalow; 1977 - Andrew V. Schally, 1978 - Daniel Nathans; 1980 - Baruj Benacerraf; 1984 - Cesar Milstein; 1985 - Michael Stuart Brown; 1985 - Joseph L. Goldstein; 1986 - Stanley Cohen; 1986 - Rita Levi-Montalcini; 1988 - Gertrude Elion; 1989 - Harold Varmus; 1991 - Erwin Neher; 1991 - Bert Sakmann; 1993 - Richard J. Roberts; 1993 - Phillip Sharp; 1994 - Alfred Gilman; 1994 - Rita Levi-Montalcini; 1995 - Edward B. Lewis; 1996 - Lu Roselacovino; 1997 - Stanley B. Prusiner; 2000 - Eric R. Kandel; 2002 - H. Robert Horvitz;
(e OUTROS se os tivessem deixado VIVER)

ECONOMIA:
1970 - Paul Anthony Samuelson; 1971 - Simon Kuznets; 1972 - Kenneth Joseph Arrow; 1975 - Leonid Kantorovich; 1976 - Milton Friedman; 1978 - Herbert A. Simon; 1980 - Lawrence Robert Klein; 1985 - Franco Modigliani; 1987 - Robert M. Solow; 1990 - Harry Markowitz; 1990 - Merton Miller; 1990 - 1992 - Gary Becker; 1993 - Robert Fogel; 1994 – John C. Harsanyi; 1999 - 1999 - Martinus J. Godefriedus Veltman; 2002 – Daniel Kahneman;

(e OUTROS se os tivessem deixado VIVER)

FÍSICA:
1905 - Adolf Von Baeyer; 1906 - Henri Moissan; 1907 - Albert Abraham Michelson; 1908 - Gabriel Lippmann; 1910 - Otto Wallach; 1915 - Richard Willstaetter; 1918 - Fritz Haber; 1921 - Albert Einstein; 1922 - Niels Bohr; 1925 - James Franck; 1925 - Gustav Hertz; 1943 - Gustav Stern; 1943 - George Charles de Hevesy; 1944 - Isidor Isaac Rabi; 1952 - Felix Bloch; 1954 - Max Born; 1958 - Igor Tamm; 1959 - Emilio Segre; 1960 - Donald A. Glaser; 1961 - Robert Hofstadter; 1961 - Melvin Calvin; 1962 - Lev Davidovich Landau; 1962 - Max Ferdinand Perutz; 1965 - Richard Phillips Feynman; 1965 - Julian Schwinger; 1969 - Murray Gell-Mann; 1971 - Dennis Gabor; 1972 - William Howard Stein; 1973 - Brian David Josephson; 1975 - Benjamin Mottleson; 1976 - Burton Richter; 1977 - Ilya Prigogine; 1978 - Arno Penzias Allan; 1978 - Peter L Kapitza; 1979 - Stephen Weinberg; 1979 - Sheldon Glashow; 1979 - Herbert Charles Brown; 1980 - Paul Berg; 1980 - Walter Gilbert; 1981 - Roald Hoffmann; 1982 - Aaron Klug; 1985 - Albert A. Hauptman; 1985 - Jerome Karle; 1986 - Dudley R. Herschbach; 1988 - Leon Lederman; 1988 - Melvin Schwartz; 1988 - Jack Steinberger; 1989 - Sidney Altman; 1990 - Jerome Friedman; 1992 - Rudolph Marcus; 1992 - George Charpak; 1995 - Martin Perl; 1995 - Frederik Reines; 1996 - Douglas D. Osheroff; 1996 - David M. Lee; 1997 - Claude Cohen-Tannoudji; 1999 - Martinus J. Godefriedus Veltman; 2000 - Alan J. Heeger; 2002 - Raymond Davis; 2003 - Vitaly Ginzburg; 2004 - David J. Gross; 2004 - David Politzer;

(e OUTROS se os tivessem deixado VIVER)

QUÍMICA:
1905 - Adolph Von Baeyer; 1906 - Henri Moissan; 1910 - Otto Wallach; 1915 - Richard Willstaetter; 1918 - Fritz Haber; 1943 - George Charles de Hevesy; 1961 - Melvin Calvin; 1962 - Max Ferdinand Perutz; 1972 - William Howard Stein; 1977 - Ilya Prigogine; 1979 - Herbert Charles Brown; 1980 - Paul Berg; 1980 - Walter Gilbert; 1981 - Roald Hoffmann; 1982 - Aaron Klug; 1985 - Albert A. Hauptman; 1985 - Jerome Karle; 1986 - Dudley R. Herschbach; 1988 - Robert Huber; 1989 - Sidney Altman; 1992 - Rudolph Marcus; 1998 – Walter Kohn; 2000 - Alan J. Heeger; 2004 - Avram Hershko; 2004 - Aaron Ciechanover;

(e OUTROS se os tivessem deixado VIVER)

TOTAL (sem os OUTROS...)
175

RAÇA INFERIOR?!!!



DUMA CARTA (1) DO CHEFE SUPERIOR DAS S.S. E DA POLÍCIA DOS PAÍSES-BAIXOS OCUPADOS, A HIMMLER

Reichsfuehrer:

Tenho a honra de lhe apresentar um relatório sobre a deportação de judeus. Até agora despachámos, incluindo os judeus primeiramente entregues no compo de Mauthausen, vinte mil para Auschwitz. Contámos deportar, de toda a Holanda, mais ou menos cento e vinte mil, cifra que com­preende, bem entendido, os judeus mistos que, para já, ainda cá deixaremos ficar... Deve tratar-se de seis mil casos, de modo que devemos contar com mais ou menos catorze mil judeus de casamentos mistos que não serão despachados ainda.
Nos Países-Baixos existe uma tal chamada «Werkverruiming»... uma instituição que arranja trabalho aos judeus em empresas e campos. Não interferimos, até agora, nos campos do «Werkverruiming» para darmos, antes de mais nada, oportunidade aos judeus de se refugiarem para lá. Nesses campos estão, mais ou menos, sete mil judeus. Até 1 de Outubro o número deve elevar-se para oito mil. Estes judeus têm cerca de vinte e dois mil parentes por toda a Holanda. No dia 1 de Outubro mandarei ocupar, de surpresa, os campos de «Werkverruiming» .. e, ainda no mesmo dia, serão presos os parentes no exterior e enviados para os dois grandes campos novos para judeus, em Wester­bork, perto de Assen e Vught perto de Hertogenbosch. Espero que sejam postos à minha disposição três comboios em vez de dois. Os trinta mil judeus serão despachados até ao dia 1 de Outubro.
Espero que consigamos desembaraçar-nos, até ao Natal, também destes trinta mil, de modo que cinquenta mil judeus, isto é, metade dos que cá existem serão já afastados da Holanda...
No dia 15 de Outubro os judeus serão postos à margem da lei, quer dizer que desse dia em diante uma vasta acção policial se desencadeará, não só composta de organismos policiais alemães e holandeses mas também das divisões de trabalho da N. S. D. A. P., dos grupos do partido da NSB (o partido dos nacional-socialistas holandeses - nota do autor) a Wermacht, etc. Todos os judeus que se encontram na Holanda serão entregues no campo para judeus. Nenhum deles, a não ser algum privilegiado, poderá aparecer na Holanda. Ao mesmo tempo iniciarei as publicações em que os arianos, que escondem judeus ou os ajudam a passar a fronteira ou falsificam papéis de identificação, ficam avisados de que lhes confiscamos os bens e os transferimos para um campo de concentração, pois farei tudo para impedir a fuga dos judeus que está a tomar proporções enormes...
As novas centúrias da polícia holandesa mostram-se muito eficazes e prendem, dia e noite, centenas de judeus. O único perigo a assinalar é o facto de, aqui e acolá, um polícia cometer o erro de querer enriquecer com a pro­priedade judaica...
O campo de Westerbork já está concluído, o de Vught estará pronto de 10 a 15 de Outubro.

Heil Hitler
O seu obediente e devotado Rauter

(1) No original alemão conservaram-se os muitos erros gramaticais e de pontuação desta carta.
Ernst Schnabel in No Rasto de Anne Frank, págs. 72-74.

IRENA SENDLER

"A Mãe Dos Meninos Do Holocausto"





ARISTIDES DE SOUSA MENDES

"A Loucura De Um Justo"

"Em Que Mundo Vivemos Se É Preciso Ser Louco Para Fazer O Que É Justo"!



O DIÁRIO DE ANNE FRANK


"'Livros do Brasil' honra-se de apresentar ao público português, incluindo-o nesta 'Colecção Dois Mundos', um dos livros mais extraordinários do nosso tempo: O Diário de Anne Frank. Traduzido em todas as línguas cultas, adaptado ao teatro e ao cinema (com a actriz Audrey Hepburn personificando Anne). Este Diário não foi escrito como obra literária, com a ideia no público - mas ultrapassa em talento, em beleza, em dignidade humana e em profundo significado a maior parte de quanto se tem publicado nos últimos anos. Anne era uma rapariguinha de uma família judaica de Frankfort que se refugiou na Holanda para escapar às perseguições nazis. Invadido este país, a família esconde-se com outras pessoas num 'anexo' de uma casa, onde, protegida por gente corajosa e dedicada consegue viver largo tempo, sempre no terror de ser descoberta. Acabou por sê-lo. E o diário de Anne foi encontrado por acaso num monte de papéis velhos. Anne veio a morrer no campo de concentração de Bergen-Belsen. Mas o diário que essa rapariguita escreveu é, na sua perspicácia e na sua desenvoltura adolescente, um documento, um autêntico documento humano - e, só pelo facto de existir, um protesto contra as injustiças do mundo em que vivemos. Como diz a escritora Ilse Losa, que dedicadamente traduziu e prefaciou estas páginas comoventes: 'Reencontramo-nos em Anne. Sentimos a verdade, nua e crua, em cada uma das suas palavras. E é precisamente por isso, pela identidade dos sentimentos humanos, independentemente de latitudes e de raças, que esta obra ganha cunho de universalidade'."


          Sábado, 20 de Junho de 1942

          Durante uns dias não escrevi nada porque, primeiro quis pensar seriamente na finalidade e no sentido de um diário. Experimento uma sensação singular ao escrever o meu diário. Não é só por nunca ter 'escrito', suponho que, mais tarde, nem eu nem ninguém achará interesse nos desabafos de uma rapariga de treze anos. Mas na realidade tudo isso não importa. Apetece-me escrever e quero aliviar o meu coração de todos os pesos.
          'O papel é mais paciente do que os homens'. Era nisso que eu pensava muitas vezes quando, nos meus dias melancólicos, punha a cabeça entre as mãos e sem saber o que havia de fazer comigo. Ora queria ficar em casa, ora queria sair e, a maior parte das vezes, ficava-me a cismar sem sair do sítio. Sim, o papel é paciente! E não tenciono mostrar este caderno com o nome pomposo de 'Diário' seja a quem for, a não ser que venha a encontrar na minha vida o tal 'grande amigo' ou a tal 'grande amiga'.
          De resto, a mais ninguém poderá interessar o que vou escrever. E pronto! Cheguei ao ponto principal de todas estas considerações: não tenho uma verdadeira amiga! Vou-me explicar melhor, pois ninguém pode compreender que uma rapariga de treze anos se sinta só. É, de facto, coisa estranha. Tenho pais simpáticos e bons, tenho uma irmã de dezasseis anos e, ao todo, por aí uns trinta conhecidos ou o que se chama geralmente 'amigos'. Tenho uma comitiva de admiradores que me fazem todas as vontades. Mesmo na aula tentam ver-me o rosto com um espelhinho de bolso e só se dão por satisfeitos quando lhes sorrio. Tenho parentes, tias e tios, muito simpáticos, uma casa bonita, e, pensando bem, não me falta nada, senão uma amiga! Com todos os meus numerosos conhecidos, só consigo fazer tolices ou falar sobre coisas banais. Não me é possível abrir-me, sinto-me como que 'abotoada'. Pode ser que esta falta de confiança seja defeito meu. Mas não há nada a fazer e tenho pena de não poder modificar as coisas.
          Por tudo isto é que escrevo um diário. E para evocar na minha fantasia a ideia da amiga há tanto tempo desejada, não quero, como qualquer pessoa, assentar só factos. Este diário é que há-de ser a minha amiga, e vou-lhe pôr um nome. Essa amiga chama-se Kitty.
          Seria incompreensível a minha conversa com a Kitty se eu não contasse primeiro a história da minha vida, embora sem grande vontade.
          Quando meus pais casaram tinha o meu pai trinta e seis anos e a minha mãe vinte e cinco. Minha irmã Margot nasceu em 1926 em Frankfort sobre o Meno; em 12 de Junho de 1929 vim eu. Como somos judeus, emigrámos, em 1933, para a Holanda, onde meu pai se tornou director da Travis A-G. Esta firma trabalha em estreita ligação com a Kolen & Co., no mesmo edifício.
          A nossa vida decorria com as aflições do costume, pois as pessoas de família que ficaram na Alemanha não escaparam às perseguições de Hitler. Depois dos 'progroms' de 1938 os dois irmãos de minha mãe fugiram para a América. Minha avó veio viver connosco. Tinha nessa altura setenta e três anos. A partir de 1940 foram-se acabando os bons tempos. Primeiro veio a guerra, depois a capitulação, em seguida a entrada dos alemães. E então começou a miséria. A uma lei ditatorial seguia-se outra; e, em especial para os judeus, as coisas começaram a ficar feias. Obrigaram-nos a usar a estrela e a entregar as bicicletas, não nos deixavam andar nos carros eléctricos e muito menos de automóvel.
          Os judeus só podiam fazer compras das 3 às 5 horas - e só em lojas judaicas. Não podiam sair à rua depois das 8 da noite e nem sequer ficar no quintal ou na varanda. Não podiam ir ao teatro nem ao cinema, nem frequentar qualquer lugar de divertimentos. Também não podiam nadar, nem jogar ténis ou hóquei, nem praticar qualquer outro desporto. Os judeus não podiam visitar os cristãos. As crianças judaicas eram obrigadas a frequentar escolas judaicas. Cada vez saíam mais decretos... Toda a nossa vida estava sujeita a enorme pressão. Jopie dizia a cada passo: "Já nem tenho coragem para fazer seja o que for porque tenho sempre medo de fazer qualquer coisa que seja proibida".
          Em Janeiro deste ano morreu a avozinha. Ninguém imagina quanto eu gostava dela e que falta me tem feito. Em 1934 mandaram-me para o jardim-escola Montessori. Depois estudei ainda as primeiras classes primárias naquela escola. No último ano, a directora, a srª K., era chefe da minha turma. No fim do ano despedimo-nos comovidas, e ambas chorámos muito. Desde o ano passado a Margot e eu frequentamos o Liceu judaico; ela está no 4º ano e eu no 1º.
          Nós, os quatro da família, ainda não temos muito de que nos queixar. Estamos bem. E assim cheguei ao presente, à data de hoje.

Sexta-feira, 9 de Outubro de 1942

Querida Kitty!

Hoje só te posso dar notícias tristes e deprimentes. Os nossos amigos e conhecidos judaicos são deportados em massa. A Gestapo trata-os sem a menor consideração. Em vagões de gado leva-os para Westerbork, o campo para judeus. Westerbork deve ser um sítio horrível. Estão lá milhares de pessoas e nem há sequer lavatórios nem W. C. que, de longe, cheguem para todos. Conta-se que as pessoas dormem em barracas, homens, mulheres e crianças, todos misturados. Não podem fugir: quase todos se podem identificar pelas cabeças rapadas ou então pelo seu tipo judaico.
Se já na Holanda as coisas se passam deste modo, como há-de ser então nos sítios longínquos para onde levam essa gente? A emissora inglesa fala de câmaras de gás. De qualquer forma talvez seja a câmara de gás a maneira mais rápida de se morrer... A Miep falou-nos de acontecimentos terríveis e está excitadíssima. Ainda há pouco encontrou, em frente da sua porta, uma velhinha manca. Estava à espera do automóvel da Gestapo que recolhe as pessoas umas após outras. A velha tremia de medo. Os canhões da defesa atroavam os ares. Os raios dos projectores cruzavam-se no céu, a trovoada dos aviões ingleses ecoava entre as casas. Mas a Miep não teve coragem de arrastar a mulherzinha para dentro da sua casa. Os alemães castigam com dureza tais procedimentos.
Também a Elli está desanimada e triste. O seu noivo foi levado para trabalhar na Alemanha. Ela receia que o seu Dirk possa ser atingido quando há bombardeamentos. Os aviões ingleses despejam milhões de quilos de bombas. Piadinhas como: "Descansem, não lhe cairá em cima um milhão delas", ou "só uma bomba chega bem", acho-as grosseiras. O Dirk não foi o único que teve de partir. Todos os dias saem comboios de jovens, forçados a ir. Um ou outro consegue fugir pelo caminho ou 'mergulhar',1 mas são tão poucos! A minha cantiga triste ainda não acabou. Já ouviste falar em reféns? Pois inventaram esta coisa requintada. Parece-me o pior de tudo o que inventaram. Gente inocente é presa. Se em qualquer parte se dá uma 'sabotage' e os autores não se encontrarem, fuzilam simplesmente alguns dos reféns. Depois publicam a notícia no jornal. E lembrar-me que também já fui alema! Hitler tirou-nos a nacionalidade há muito. Entre aquela espécie de alemães - os hitlerianos - e os judeus existe uma inimizade como não pode haver mais forte em todo o Mundo!

1 - Viver escondido, na clandestinidade.

Quarta-feira, 13 de Janeiro de 1943

Querida Kitty:


Hoje estamos todos perturbados, não conseguimos fazer nada com calma. As notícias lá de fora são horríveis. Dia e noite arrastam a pobre gente das suas casas. Só deixam levar o que cabe na mochila e algum dinheiro (mas este tiram-lho mais tarde). Separam as pessoas em três grupos, homens, mulheres e crianças. É vulgar voltarem as crianças da escola e já não encontrarem os pais, ou voltarem as mulheres das compras e darem com a casa selada. O resto da família já foi deportada.
Nos círculos cristãos também já reina o desassossego. Os jovens são enviados para a Alemanha. Toda a gente tem medo!
E durante as noites, centenas de aviões sobrevoam a Holanda, para lançarem uma chuva de bombas na Alemanha. A cada hora tombam homens na Rússia e na África. A Terra enlouqueceu, há destruição por toda a parte. A situação melhorou para os Aliados, mas o fim de tudo isto ainda está longe.
Nós aqui estamos bem, melhor de que milhares de outras pessoas. Estamos em segurança e podemos fazer planos para os tempos do pós-guerra. Podemos pensar nos vestidos e nos livros que havemos de comprar em vez de estarmos sempre preocupados com cada tostão que se gasta inutilmente e que podia servir para ajudar os outros, ou com aquelas coisas que se perderam e talvez ainda se pudessem salvar.
Há crianças, cá no quarteirão, que andam de blusinhas leves, de socas e sem meias, sem sobretudos, sem boinas ou luvas. Têm o estômago vazio, mastigam cenouras, fogem das casas frias para as ruas húmidas e ventosas, e estudam em escolas sem aquecimento. Mais: as crianças pedem pão às pessoas que passam! Chegaram até este ponto as coisas na Holanda! Ouço falar durante horas a fio sobre a miséria que esta guerra trouxe e fico cada vez mais triste. Não temos outro remédio senão esperar, calma e serenamente, o fim de tanta infelicidade. Esperam os judeus, esperam os cristãos. Esperam os povos de todo o Mundo... mas muitos esperam pela morte!

Quarta-feira, 29 de março 1944

Querida Kitty:


Ontem o ministro Bolkestein disse na emissora de Orange que, depois da guerra, se havia de publicar uma série de diários e de cartas desta época. Aqui começaram logo a falar no meu diário. E se eu publicasse um romance sobre o Anexo? Não te parece interessante? Mas, com este título, toda a gente era capaz de imaginar que se tratava de um romance policial.
Basta de brincadeira, deixa-me falar a sério. Não parecerá inconcebível ao Mundo, depois da guerra - digamos dez anos depois -, o que nós, os judeus, contarmos sobre a nossa vida aqui, as nossas conversas e as nossas refeições? Pois embora te tenha contado muita coisa, tu ainda só ficaste a saber uma pequena parcela desta vida.
O medo das senhoras, quando há bombardeamentos como os do Domingo passado, em que trezentos e cinquenta aviões ingleses lançaram meio milhão de quilos de dinamite sobre Ijmuiden e as casas estremeceram como as folhas com o vento. E o terror das epidemias que grassam no país! Disto ainda sabes pouco, e seria preciso que eu escrevesse todo o dia se quisesse fazer um relatório completo. A população forma bichas para comprar hortaliça ou seja o que for. Os médicos não podem visitar os seus doentes, porque lhes roubaram o automóvel ou a bicicleta. Ouve-se falar de pequenos furtos e de roubos em grande escala, e eu pergunto a cada passo o que foi feito da honestidade dos holandeses, quase proverbial? Crianças dos oito aos onze anos partem os vidros das habitações alheias e tiram tudo o que lhes vem parar às mãos. Ninguém tem coragem de deixar ficar a sua casa abandonada durante cinco minutos, pois, ao voltar, pode muito bem encontrá-la vazia. Todos os dias se leem nos jornais anúncios em que se prometem gratificações pela entrega de coisas roubadas, máquinas de escrever, tapetes persas, relógios eléctricos, tecidos, etc., etc. Os relógios das ruas são desmontados, e até se tiram os telefones das cabinas sem deixar ficar um pedaço de fio sequer.
Evidentemente não pode haver bom ambiente entre a população. O racionamento não chega. A invasão faz-se esperar, os homens têm de ir para a Alemanha. As crianças estão subalimentadas e doentes. Quase toda a gente usa roupa e calçado de má qualidade. Umas solas 'negras' custam cinquenta florins. Mas os sapateiros raras vezes aceitam freguesia ou então levam quatro meses a compor os sapatos se estes, entretanto, não forem roubados.
Uma coisa boa: as sabotagens contra a ocupação aumentam à medida que a alimentação piora e as condições se tornam mais severas. Os funcionários da distribuição de víveres e de outras repartições ajudam, em grande parte, a população, mas também há traidores que levam gente às prisões. Contudo, felizmente, são poucos os holandeses que estão do lado mau.

Quarta-feira, 3 de Maio de 1944

Querida Kitty:


... Estas perguntas são legítimas, mas até agora ninguém soube encontrar-lhes uma resposta satisfatória. Porque é que na Inglaterra se constroem aviões cada vez maiores, bombas cada vez mais pesadas e, ao mesmo tempo, se reconstroem filas de casas? Porque é que se gastam todos os dias milhões para a guerra, se não há dinheiro para a medicina, os artistas e os pobres? Porque é que há homens a passar fome se, em outros continentes, apodrecem víveres? Porque é que os homens são tão insensatos?
Não acredito que a culpa da guerra caiba exclusivamente aos que governam e aos capitalistas. Não, o homem da rua também tem a sua culpa, pois não se revolta. O homem nasce com o instinto da destruição, do massacre, da fúria, e enquanto toda a Humanidade não sofrer uma metamorfose total, haverá sempre guerras. O que se construiu e cultivou e o que cresceu será sempre destruído, e à Humanidade só resta recomeçar.
Tenho estado muitas vezes abatida mas nunca me senti aniquilada. Considero a nossa vida de 'mergulhados' uma aventura perigosa que é, ao mesmo tempo, romântica e interessante. Sempre me propus viver uma vida diferente da das raparigas em geral, do mesmo modo como também não me agrada para o futuro a vida banal das donas de casa. Isto aqui é um bom princípio com muitas coisas cheias de interesse e, mesmo nos momentos mais perigosos, vejo o cómico da situação e não posso deixar de me rir.
Sou jovem e com certeza ainda há em mim boas qualidades por despertar; sou jovem e forte e vivo conscientemente esta grande aventura. Porque hei-de lamentar-me todo o dia?
Muito me deu a natureza: alegria e força. Cada vez mais sinto como o meu espírito se desenvolve, sinto a libertação que se está aproximando, sinto como é bela a natureza e como é boa a gente que me rodeia. Porque hei-de estar desesperada?

Sexta-feira, 12 de Maio de 1944

Querida Kitty:


... E que querem dizer com os crimes de Sodoma e Gomorra? Ai!, tanta coisa por perguntar, tanta coisa por aprender! A Lieselote von der Pfalz até a abandonei por completo!
Vês, Kitty, que estou a transbordar?
E agora outra coisa: Já sabes há muito que o meu maior desejo é vir a ser jornalista e, mais tarde, escritora famosa. Serei capaz de realizar esta minha ambição? Ou será tudo isto uma mania de grandeza ou até uma loucura? Só o futuro o dirá. Mas assuntos não me faltam. Hei-de publicar um livro depois da guerra: O Anexo. Se serei ou não bem sucedida, não se pode prever, mas o meu diário servir-me-á de base. Além da história do anexo, tenho outras ideias. Hei-de falar nelas mais longamente quando tiverem tomado forma.

Segunda-feira, 22 de Maio de 1944

Querida Kitty:


... Infelizmente soubémos que muita gente está agora contra os judeus e que reina o anti-semitismo nos círculos onde antigamente nem se pensava em tal coisa. Isto impressionou-nos profundamente. A causa deste ódio contra os judeus talvez se compreenda e se explique, mas a verdade, é que se trata de um equívoco. Os cristãos censuram os judeus e dizem que eles se rebaixam perante os alemães, que denunciam os seus protectores e que muitos cristãos têm, por culpa dos judeus, sofrido terríveis provações. Pode ser que haja alguma verdade nisto mas, como em todas as coisas, há o reverso da medalha. O que fariam os cristãos se estivessem no lugar dos judeus? Será fácil a alguém manter-se firme e correcto com os métodos usados pelos alemães? Todos sabem que é quase impossível. Então, porque é que se exige o impossível dos judeus? Nos grupos ilegais da resistência corre o boato de que os judeus alemães, em tempos emigrados para a Holanda e agora deportados para a Polónia, nunca mais poderão regressar aqui. Tinham direito de asilo na Holanda, mas logo que Hitler tenha desaparecido, serão forçados a voltar para a Alemanha. Ao ouvir coisas assim, surge a pergunta: Para que se faz esta guerra tão dura e tão longa? Diz-se sempre que lutamos todos juntos pela verdade, pela liberdade e pelos direitos do homem. E afinal a discórdia começa enquanto ainda se luta, e já outra vez o judeu é inferior aos outros? Oh! como é triste que o velho dito se verifique mais uma vez: "Os actos de um cristão são da sua própria responsabilidade. Mas tudo o que faz qualquer judeu recai sobre todos os judeus!".
Com franqueza não compreendo que os holandeses, este povo bom, honesto e leal, nos condene assim, a nós que somos o povo mais oprimido, mais infeliz de todos os povos do Mundo. Só me resta esperar isto: que o ódio aos judeus seja apenas passageiro e que os holandeses voltem a mostrar-se como são na realidade! Oxalá voltem a não vacilar no seu sentido de justiça. Porque o anti-semitismo é uma injustiça!!!
Gosto da Holanda. Esperei sempre que um dia me servisse de pátria, a mim, que já não tenho pátria. E continuo a ter esta esperança!

Quinta-feira, 25 de Maio de 1944

Querida Kitty:


Todos os dias acontecem coisas desagradáveis. Hoje de manhã prenderam o nosso bom hortaliceiro, que tinha escondido em casa dois judeus. Foi um golpe muito duro para nós, não só por causa daqueles judeus que estão agora à beira do abismo, mas também por causa do pobre hortaliceiro.
O Mundo está às avessas. Pessoas correctas e boas são enviadas para os campos de concentração, para as prisões e para as celas solitárias, enquanto a ralé governa sobre os velhos, os jovens, os ricos e os pobres. Um é apanhado porque se dedicava ao mercado 'negro', outro porque protegia judeus ou outros 'mergulhados'. Ninguém sabe o que o espera amanhã.
Também para nós o hortaliceiro significa uma perda tremenda. A Miep e a Elli não podem carregar com o saco de batatas e a nossa única saída é comer menos. Como conseguiremos isso, ainda o hás-de vir a saber, mas desde já te digo, não vai ser divertido. A mãe propõe suprimir o pequeno almoço e comer ao almoço a papa, e à noite batatas fritas e, talvez, uma ou duas vezes por semana, um pouco de salada e de legumes. Isto quer dizer: passar fome. Mas todas estas privações são preferíveis a sermos descobertos.

(EPISÓDIO DO ASSALTO - GRANDE SUSTO)
          Terça-feira, 11 de Abril de 1944

          Querida Kitty:


          Sinto como que marteladas na cabeça! Nem sei por onde começar. Sexta-feira (Sexta-feira Santa) à tarde, e no sábado também, fizémos vários jogos. Esses dias passaram-se sem novidade e bastante depressa. No domingo pedi ao Peter que viesse aqui e mais tarde subimos e ficámos lá em cima até às seis horas. Das seis e quinze até às sete horas ouvimos um belo concerto de música de Mozart; do que mais gostei foi da Kleine Nachtmusik (Allegro). Não consigo escutar bem quando há muita gente à minha volta, porque a boa música comove-me profundamente. (Que lindo! Uma menina de 14 anos!! Que sensibilidade inteligente! EE)
          Domingo à noite o Peter e eu fomos ao sótão. Para estarmos sentados confortavelmente, levámos umas almofadas que pusémos em cima de um caixote. O sítio é estreito e estávamos muito apertados um contra o outro. A Mouchi fazia-nos companhia. Assim havia quem nos vigiasse. De repente, às nove menos um quarto, o sr. van Daan assobiou e perguntou se nós tínhamos levado uma almofada do sr. Dussel. Saltámos do caixote abaixo e descemos com as almofadas, o gato e o sr. van Daan. Por causa da almofada do sr. Dussel desenrolou-se uma verdadeira tragédia. Ele estava desaustinado por termos levado a sua 'almofada da noite'. Receou que a enchêssemos de pulgas, fez cenas tremendas por causa de uma reles almofada. Como vingança, o Peter e eu metemos-lhe duas escovas duras na cama. Rimo-nos muito daquele pequeno 'intermezzo'. Mas o divertimento não havia de ser de longa dura. Às nove e meia o Peter bateu à porta e pediu ao pai que subisse para lhe ensinar uma frase inglesa muito complicada.
          - Aqui há gato - disse eu à Margot. - Ele não está a dizer a verdade.
          E tinha razão. Havia ladrões no armazém. Com rapidez, o pai, o Peter, o sr. van Daan e o Dussel desceram. A mãe, a Margot, a srª van Daan e eu ficámos à espera. Quatro mulheres cheias de medo não podem fazer outra coisa senão porem-se a falar. Assim fizémos. De repente, ouvimos, lá em baixo, uma pancada forte. Depois, silêncio. O relógio deu dez menos um quarto. Estávamos lívidas, muito quietas e cheias de medo. Que foi feito dos homens? O que é que significava aquela pancada? Haverá luta entre eles e os ladrões? Dez horas. Passos na escada. Entra primeiro o pai, pálido e nervoso, depois o sr. van Daan.
          - Fechem a luz. Subam sem fazer barulho. Deve vir a polícia.
          Agora não havia tempo para medos. Fechámos a luz. Ainda peguei no meu casaquinho e subimos.
          - O que aconteceu? Depressa, conta! - Mas não havia ninguém que pudesse contar, porque os senhores já tinham descido outra vez. Às dez e dez voltaram, dois ficaram de guarda na janela aberta, no quarto do Peter. A porta do corredor ficou fechada. A porta giratória também. Sobre o candeeiro lançámos uma camisola. Depois eles começaram a contar:
          - O Peter ao ouvir duas pancadas fortes, correu abaixo e viu que do lado esquerdo da porta do armazém faltava uma tábua. Voltou depressa para cima, avisou a parte mais corajosa do grupo e então eles, os quatro, desceram. Quando entraram no armazém encontraram os ladrões em flagrante. Sem reflectir o sr. van Daan gritou:
          - Polícia!
          Os ladrões fugiram num instante. Para evitar que a ronda da Polícia notasse o buraco, os nossos homens colocaram a tábua no sítio, mas um pontapé de lá de fora deitou-a novamente ao chão. Os quatro ficaram perplexos com tanto atrevimento. O sr. van Daan e o Peter sentiram vontade de matar aqueles patifes. O sr. van Daan bateu com o machado no chão. Depois novamente silêncio. Tentaram colocar outra vez a tábua.
          Novo susto: lá fora estava um casal e a luz forte de uma lâmpada de mão iluminou todo o armazém.
          - Com mil raios! - disse um dos nossos e... num instante trocaram o seu papel de polícias pelo de ladrões. Fugiram. Subiram. O Peter abriu portas e janelas na cozinha do escritório particular, deitou o telefone ao chão e depois desapareceram todos por detrás da porta giratória.
          
Fim da Primeira Parte

          Provavelmente o casal avisaria a Polícia. Era domingo, Domingo de Páscoa, e ninguém viria ao escritório, antes de terça-feira de manhã. Não podíamos fazer mesmo nada. Imagina duas noites e um dia a passar com tal angústia! Nós, as mulheres é que já não éramos capazes de imaginar coisa alguma. Estávamos sentadas às escuras; a srª van Daan resolveu fechar todas as luzes, e sempre que se ouvia um ruído murmurávamos "chut, chut".
          Eram dez e meia, onze horas, e de ruídos nada. Alternadamente vinham ter connosco o pai e o sr. van Daan. Depois, às onze e um quarto, ouvimos ruídos lá em baixo. Agora já se ouvia a respiração de cada um de nós. Não nos mexemos. Passos na casa, no escritório particular, na cozinha, depois... na escada que conduz à porta camuflada. Retivémos a respiração; oito corações a martelar. Passos na escada, sacudidelas nas prateleiras da porta giratória. Estes momentos são impossíveis de descrever.
          - Estamos perdidos - pensei, e já nos via, a todos, arrastados pela Gestapo através da noite. Mais duas vezes mexeram na porta giratória, depois alguma coisa caiu e os passos afastaram-se. De momento, estávamos salvos. Então começámos todos a tremer. Ouvia-se o bater de dentes; ninguém conseguia pronunciar uma palavra.
          Não se ouvia mais nada em toda a casa, mas havia luz do outro lado da porta camuflada. Teriam desconfiado desta ou esqueceram-se de apagar a luz? Dentro do prédio já não se encontravam estranhos; só lá fora, na rua, haveria possivelmente um guarda. As nossas línguas soltaram-se, começámos a falar, mas o medo ainda nos dominava. Todos precisavam... O Peter tem um cesto de papéis de chapa de ferro, que podia substituir o balde que estava no sótão.
          O sr. van Daan começou, depois o pai. A mãe teve vergonha. O pai levou-nos o cesto ao quarto, onde a Margot, a srª van Daan e eu, muito contentes, o utilizámos, e, por fim, também a mãe. Todos queriam papel. Felizmente eu trazia algum comigo no bolso.
          Do cesto vinha um cheirete horrível; falávamos em voz baixa; estávamos cansados. Era meia-noite.
          - Deitem-se no chão e durmam!
          Deram-nos, à Margot e a mim, almofadas. A Margot ficou deitada junto do armário dos víveres e eu entre as pernas da mesa. No chão não se sentia tanto o mau cheiro, mas a srª van Daan, sem fazer o mínimo ruído, foi buscar um pouco de cloro e deitou-o no cesto, que depois cobriu com um pano velho.
          Conversas, murmúrios, mau cheiro, medo, e sempre alguém sentado no cesto. Impossível dormir-se. Às duas e meia eu estava tão cansada que não ouvi mais nada até às três e meia. Depois acordei. Senti a cabeça da srª van Daan em cima do meu pé.
          -Dêem-me alguma coisa para vestir. Tenho frio.
          Atiraram-me roupa. Mas não queiras saber o que era!
Fiquei com calças de lã em cima do pijama, um pulover e uma saia preta, umas meias brancas e, por cima, soquetes rotos.
          Agora a sr.ª van Daan sentou-se numa cadeira e o sr. van Daan deitou-se no chão, também em cima dos meus pés. Comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido e pus-me a tremer de tal forma que o sr. van Daan não pôde dormir. Preparei mentalmente as palavras que havíamos de dizer, caso a Polícia voltasse. Com certeza era preciso confessar-lhes que éramos 'mergulhados'. Ou eles eram bons holandeses - e então estávamos salvos - ou eram pró-nazis e então aceitavam dinheiro!
          - Tira o rádio - suspirou a srª van Daan.
          - Queres que o deite ao fogão? Se nos encontrarem, já não importa que encontrem também o rádio.
          - Então encontram também o diário da Anne - disse o pai.
          - E se o queimássemos? - propôs a pessoa mais medrosa do nosso grupo.
          Este momento e aquele em que eu tinha ouvido as sacudidelas da Polícia na porta giratória, foram para mim os mais terríveis.
          - O meu diário não! O meu diário só será queimado comigo!
          Graças a Deus, o pai já nem me respondeu.
          Não vale a pena reproduzir todas as conversas. Confortei a srª van Daan, que estava cheia de um medo horrível. Falámos de fugas, interrogatórios, da Gestapo e da necessidade de sermos corajosos.
          - Agora temos de ser valentes como os soldados, sr.ª van Daan. Se nos apanharem, o nosso sacrifício será pela rainha, a pátria, a verdade e o direito, como dizem também na emissora de Orange.
          O que mais me aflige é arrastarmos tanta gente para a infelicidade.
          O sr. van Daan tornou a trocar o lugar com a sua mulher, o pai veio para junto de mim. Os homens fumavam sem interrupção, de vez em quando ouvia-se um suspiro fundo, depois alguém a correr ao cesto... e isto ainda se repetiu muitas vezes. Quatro horas, cinco horas, cinco e meia. Fui ao quarto do Peter. Ficámos sentados à janela, ouvíamos os ruídos, cada um sentia as vibrações do corpo do outro, tão encostados estávamos. Só dizíamos uma palavra, de longe em longe. Estávamos sempre atentos ao que se ia passando. Ao lado ouvimos alguém abrir as persianas.
          Às sete, os senhores queriam telefonar ao Koophuis e pedir-lhe que mandasse alguém. Escreveram num papel o que lhe iam dizer. Havia o perigo de o guarda em frente da porta ouvir o toque do telefone, mas o perigo de a Polícia voltar era maior ainda. Os tópicos a comunicar ao Koophuis eram os seguintes:
          Assalto: a Polícia entrou em casa, chegou até à porta giratória, mas não foi mais longe.
          Ladrões, provavelmente apanhados em flagrante, arrombaram a porta do armazém e fugiram pelo quintal.
          Porta principal trancada. O Kraler deve ter saído pela outra porta. As máquinas de escrever estão em segurança na caixa preta, no escritório particular.
          Tentar avisar o Henk. Ir buscar a chave a casa da Elli.
Ele que venha cá ao escritório com o pretexto de que o gato precisa de comida.
          Tudo se fez tal qual. Telefonou-se ao Koophuis, levámos as máquinas (que ainda estavam connosco em cima) para baixo, e guardámo-las na caixa preta. Sentámo-nos à volta da mesa e esperámos pelo Henk ou... pela Polícia.
          O Peter adormeceu. O sr. van Daan e eu acabámos por deitar-nos no chão. Depois ouvimos passos pesados. Eu disse, em voz baixa:
          - É o Henk.
          - Não, não, é a Polícia, ouvi dizer alguém.
          Bateram à porta. O assobio da Miep. Agora é que a sr.a van Daan não aguentou mais. Branca como a cal, sem forças, estava caída na cadeira, e se aquela tensão se tivesse prolongado por mais um minuto, ela teria desmaiado.
          Quando a Miep e o Henk entraram no nosso quarto ofereceu-se-lhes um lindo espectáculo. Só a mesa valia a pena ser fotografada. A revista Filme e Teatro aberta, e as fotos das lindas 'estrelas' do bailado besuntadas com compota e com o remédio contra a diarreia. Dois frascos de compota, um pão e meio, espelho, pente, fósforos, cinza, cigarros, tabaco, cinzeiro, calcinhas, lâmpada de bolso, papel higiénico, etc., etc...
          Já se vê, recebemos o Henk e a Miep com júbilo e lágrimas. O Henk tapou o buraco da porta com a tábua e depois foi à Polícia para comunicar o assalto. A Miep encontrou debaixo da porta um aviso do guarda-nocturno que viu o buraco e avisou a Polícia. O Henk foi também falar com ele.
          Tínhamos uma meia hora para nos arranjarmos. Nunca vi uma tal metamorfose em tão pouco tempo. A Margot e eu abrimos as camas, fomos ao W. C., lavámo-nos, limpámos os dentes e penteámo-nos. Depois, num instante, arrumámos o quarto e voltámos para cima. A mesa já estava limpa. Fomos buscar água, fizémos café e chá e pusemos a mesa para o pequeno almoço. O pai e o Peter, limpáram o cesto sujo com água e cloro.
          Às onze horas já nos encontrávamos todos com o Henk à volta da mesa e acalmámos pouco a pouco. O Henk contou:
          - O guarda nocturno Slagter ainda estava a dormir. Falei com a mulher e ela disse-me que o marido, ao fazer a ronda nos cais, tinha reparado no buraco na nossa porta da rua. Foi procurar um polícia e, juntos, rebuscaram a casa de cima a baixo. Que na terça-feira viria fazer mais comunicações ao Kraler. Foi à esquadra da Polícia, onde ainda não sabiam nada do assalto, mas tomaram nota e disseram que viriam cá também na terça-feira.
          No regresso o Henk passou pela loja do hortaliceiro, na esquina, e contou-lhe do roubo.
          - Eu sei, disse o hortaliceiro pachorrentamente. Passei, ontem à noite com a minha mulher pelo vosso estabelecimento e vi o tal buraco na porta. A minha mulher não quis parar mas eu acendi a minha lâmpada de bolso e iluminei o interior. Os ladrões fugiram logo. Não chamei a Polícia, pensei que seria melhor. Não sei nada, mas imagino algumas coisas...
          O Henk agradeceu e foi-se embora. O hortaliceiro decerto suspeita de que estamos aqui, pois entrega as batatas sempre à hora do almoço. Um tipo às direitas.
          Depois do Henk nos ter deixado - era uma hora - deitámo-nos para dormir. Às três menos um quarto acordei e já não vi o Dussel na sua cama. Ainda toda entorpecida encontrei, por acaso, o Peter no quarto de banho. Combinámos encontrar-nos depois em baixo, no escritório.
          - Ainda sentes coragem para subir ao sótão? - perguntou-me. Disse-lhe que sim, fui buscar a minha almofada e subimos. O tempo estava uma maravilha. Em breve as sereias começaram a dar alarme. Mas nós ficámos onde estávamos. O Peter deitou-me um braço em volta dos ombros e eu também deitei um braço em volta dos seus ombros, e assim ficámos muito calmos, até que veio a Margot chamar-nos para o lanche.
          Comemos pão, tomámos limonada e já estávamos de novo dispostos a dizer brincadeiras uns aos outros. Depois disso não houve mais nada de especial. À noite agradeci ao Peter por ele ter sido o mais corajoso de todos nós.
          Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. Imagina a Polícia a remexer na estante da nossa porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco!
          Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos bondosos protectores.
          - Estamos salvos. Não nos abandones!
          É apenas isto que podemos suplicar.
          Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório do Kraler mas sim no quarto de banho. Às oito e meia e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e meia não podemos utilizar o autoclismo do W. C.. Hoje à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se devia mandar fazer isso. O Kraler censurou a nossa imprudência e também o Henk disse que não devíamos em tais casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que somos 'mergulhados', judeus enclausurados, presos num sítio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto é possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia em que também nós voltaremos a ser gente como os outros e não apenas judeus.
          Quem foi que nos impôs este destino? Quem decidiu excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? Quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará. Se apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro país. Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.
          Não percamos a coragem. Temos de ter consciência da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não morrerão!
          Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela Polícia, estava preparada como os soldados no campo de batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra.
          Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não conseguir este meu fim.
          Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser mulher, uma mulher com força interior e com muita coragem.
          Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe do que a mãe. Não quero ficar insignificante. Quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
          O que sei é que a Coragem e a Alegria são os factores mais importantes na vida!

          Tua Anne



"Este livro (Os Médicos Malditos) é dedicado ao meu pai, Robert Bernadac, que conheceu
o INFERNO DA DEPORTAÇÃO Sem Nunca Me Ensinar O Ódio."
Christian Bernadac


HINO DA ALEGRIA



"Nós Somos Todos da Fantástica e Grande Família de Deus" - Tina Turner na canção We Are The World

(Pode ler mais em Meditação Para a Saúde, 27.01.2013 - Links 1R)