terça-feira, 15 de maio de 2012

Aprendendo Com Os Problemas dos Outros... PARA TER UMA FAMÍLIA MAIS FELIZ

À beira dos 50 anos, ela olha para o passado, recorda o casamento depois de breve namoro, e só tem motivos para sofrimento e lágrimas.
Aparentemente, sob todos os aspectos, eles, marido e mulher, são muito diferentes.
Em nada combinam: a começar pela imagem que ele tradicionalmente possui da mulher: 'um objecto ao serviço do seu exclusivo capricho'. Ciúmes, correspondência violada, grosseria, discussão, ameaças, desrespeito. Um inferno. Na vizinhança ninguém percebe. Na igreja que frequentam ninguém sabe.
Qual a solução do Dr. Belisário Marques para
Esposa Desesperada?

Dr Belisário

Preciso desesperadamente de falar com alguém e há pouco estava a ler a revista Mocidade quando pensei em lhe escrever. São coisas que não se falam com ninguém, ou pelo menos eu não sinto coragem de falar, mas quem sabe com alguém que é estranho e está longe, seja mais fácil. Peço licença para tratá-lo por 'você', por ser também mais fácil, e peço licença para derramar as minhas palavras assim como são, o joio e o trigo, esperando encontrar em você um amigo com capacidade para passar tudo numa peneira, deitar fora o que não presta e esquecer. Mas que tenha um coração bastante grande e caridoso para me ajudar na medida do possível.

É muito difícil para mim expressar-me. Tenho 48 anos, meu marido 52, um menino de 12 anos e 3 filhas adultas, já fora de casa. E uma netinha.
Parece que não falta nada para sermos felizes, mas assim não acontece. É quase um inferno a vida em casa. Você entende que a gente vai ficando com o sistema nervoso confuso, esgotado, e já não sabe o que é certo ou errado, parece que a consciência fica doente, sem discernimento. Gira, gira e chega ao mesmo ponto. É assim que eu estou, e isto é horrível.

Enjoei-me completamente do meu marido. Há umas 3 semanas que passei a dormir separada. Ele chama-me de diabo e tudo o mais. Creio que a solução mais certa seria se eu morresse, mas isso pertence a Deus decidir. A alegria de viver para mim acabou quando me casei, mas a gente vai lutando.
Tenho tentado de tudo, e ao pensar em escrever a você, comecei a voltar pelo caminho percorrido. Não pense que sinto que seja uma questão de idade, menopausa. Pode estar concorrendo mas essa não é a causa. Desde moça que nunca fui muito ardente, ou muito forte, mas creio que sou mais ou menos normal, se bem que educada nos moldes daquele tempo onde o recato estava presente.
Para o meu marido, o sexo sempre foi a coisa principal na vida. Ele sempre dizia que se um dia deixasse de ser homem, se mataria pois isto é a única coisa que faz um homem feliz.
Eu já entendo de uma maneira diferente: é um ângulo da vida, como os outros; nem todos funcionam mas podem ser substituídos ou preenchidos por tantas coisas! Acho que o sexo deve ser algo maravilhoso para viver a dois, compartilhado, resultado de uma compreensão, comunicação ou sei lá o quê, mesmo uma atracção, como também entendo que o homem possa ter uma natureza mais forte, mais necessidade, etc.

Bem, mas voltando atrás, chego ao dia do nosso casamento. Você me permite e me perdoa as expressões que vou usar ... ele disse-me que não tinha a certeza se eu era virgem... Fiquei triste porque nem sequer tivera outro namorado nem contacto de espécie alguma. Quando chegámos a casa ele me disse: "Olha, agora você é casada e eu sou suficiente na sua vida. Não gosto e não quero saber de amizades, visitas ou parentes." Quando saímos para os primeiros passeios ele voltou amuado e não falou por quinze dias. Depois fiquei a saber que eu "tinha olhado para o cobrador do autocarro". E isso aconteceu durante toda a vida, ciúmes dos cunhados, de todo o mundo... do namorado da filha nem se fala, ele "tinha a certeza"... Foi vexame contínuo. Mas sempre achei que casamento é para toda a vida e fui suportando. Sem amigos, solidão e tristeza.

Mas devia ter-lhe falado, antes, nas qualidades. Ele é trabalhador, ajudava a cuidar das crianças à noite e nas doenças. Nós nos conhecemos em S. Paulo e nos correspondemos. Não houve conhecimento bastante, creio que isso foi uma coisa negativa...
Nunca fomos amigos. Nunca conseguimos conversar, os nossos mundos são tão diferentes! Ele só fala em sexo. Sempre lhe supliquei para não me repetir as piadas sujas, imundícies que os homens praticam com mulheres. Explicava-lhe que isto me prejudicava muito. É como se a mulher fosse um objecto de diversão para o homem e não um ser humano com dignidade. Isto foi-me fazendo criar nojo dele e até de mim mesma como mulher. Aliás a conversa dele sempre foi rebaixando a Mulher. Muitas noites chorei com vontade de conversar com alguém coisas comuns da vida, ser uma pessoa e não um objecto.

Tudo foi piorando e cheguei a um ponto em que o meu corpo tem calafrios e não suporto nem o cheiro dele, mas até agora nunca deixei de servi-lo apesar de tudo. Só que agora já não dá mais. Se tiver de perder o Céu, que é a única coisa porque tenho lutado durante a vida toda, perderei!...

Tenho muita tristeza e pena dele. O seu mundo ruiu. Agora que se aposentou, fica em casa vendo novelas, confere os modelos desportivos da Lotus, e queria gozar a vida. Tudo o mais acabou. Nunca conseguimos dialogar. Ultimamente temos algumas discussões aos gritos onde ele me diz: Mulher é (...), perdoe-me a expressão. Tenho os meus direitos e necessidades, minha natureza, etc.
Agora pergunto-lhe: seria justo da parte de Deus que a mulher viva oprimida feita capacho para o homem?! Não tenho muita instrução, mas penso que ele é 'machista' - sempre diz que a mulher precisa de ser ignorante para o homem dominá-la. Puxa, o que sou afinal?!
Nestes últimos anos tenho lido muito e mantido correspondência. Isso me ajudou bastante, mas agora ele abre-a, viola a minha correspondência. Se leio bons livros diz que quero virar santa; se visito um doente diz que faço caridade aos outros e não a ele. E os ataques à minha moral continuam.
Agora sou avó, é uma coisa maravilhosa, mas exijo-lhe um pouco mais de respeito. Chega de calúnias e ciúmes idiotas. Creio que a desconfiança é uma peste incurável. A pessoa autocrata destrói os outros e a si mesma.

Dr. Belisário, não imagina o meu desespero: detestar o homem que eu amo e respeito como pai dos meus filhos. Que fazer? A nossa casa já era triste, com ele sempre de mau humor, acusando todo o mundo ou se fazendo de vítima, agora então... Mas separar-me seria horrível! Quase ninguém nota nada - na igreja e na vizinhança é tudo normal e ele é simpático. Às vezes bate no ombro das pessoas, sorri, e depois diz-me em casa: "Não quero saber desse fulano aqui porque é um chato".

E aqui está a minha confusão: estarei perdida para o meu Deus? Obrigou Deus a mulher a servir o homem por toda a vida, sob pena de perder o Céu?! Onde na Bíblia diz isso?! Ele diz que a minha religião é falsa, e algumas vezes quando leio na Bíblia sobre ter misericórdia, perdoar sempre, etc, fico perplexa. Como ser humano, como filha de Deus, desejo-lhe todo o bem, procuro fazer tudo o que me é possível, mas o meu corpo quer paz, aliás, corpo e mente agem juntos. Creio que o meu mal seja mais psicológico. Procurei tratar-me com médicos de confiança mas nada adiantou.

Ele escreveu a um Conselheiro de Famílias e depois esfregou-me a resposta no nariz, onde dizia que a esposa não se pode negar de maneira alguma, etc, etc. Será que Deus tem mandado certas pessoas darem conselhos quanto à vida íntima dos outros?!

Sabe, quando uma mulher aparentemente normal se suicida e ninguém sabe porquê, eu fico imaginando que sei...

Nesta vida existem coisas e situações quase insolúveis, e creio que dar conselhos específicos é uma grande responsabilidade. É por esse motivo que recorri a você para este desabafo. Você ajuda a clarear as coisas para que as soluções apareçam, e creio que é um dom precioso, e deve mesmo ser repartido, porque é raro e há muita falta pelo mundo de um ouvido para ouvir e uma palavra amiga.
Se eu tivesse bases, gostaria de estudar e ser mais útil aos outros. Mesmo assim sempre procurei ajudar as pessoas com mensagens, pensamentos - sempre de longe porque de perto não dá. Eu fui criada num lar onde a hospitalidade e a franqueza, o amor e a amizade eram a nota tónica. É tão gostoso amar, dar e receber sem interesse. Os meus velhinhos estão lá na sua casa - de longe vêm pessoas vê-los e amá-los e são tão felizes!

Mas que faço na vida, se precisar de me sustentar? Tenho entregue a Deus as nossas vidas e a sua solução. Tenho medo que ele se mate, se não conseguir uma mulher. Aliás há anos que ele anda atrás delas mas sempre no lugar errado. Procura mulheres casadas e até amigas, mas elas fazem que não entendem... Ele não se preocupa que as pessoas percam o Céu, contanto que o corpo dele seja satisfeito!
Por favor, se você conseguir ler tudo isto, eu agradeço-lhe o sacrifício. Se me puder ajudar será bom, mas não me recomende conversar com guias espirituais que não quero. Já não se fazem mais lideres espirituais como antigamente.

Ah! Se puder, na sua coluna da revista Mocidade, algum dia esclarecer aos moços que Mulher não é sinónimo de sexo, eu creio que seria útil...
Esposa Desesperada

             Prezada Senhora

Pensei muito na sua carta. Fiquei na dúvida se a publicaria ou não... Cheguei à conclusão que sim.
Não vou dizer muito. A carta fala por si mesma. Creio que ela revela muitas lições, indica as muitas preocupações que se devem ter ao escolher um companheiro para toda a vida. Levanta uma série de tópicos importantes na vida do ser humano. É o testemunho de uma vida e um grito de desespero.
Gostaria, entretanto, de dizer algumas palavras:

Pertencer a uma organização religiosa, qualquer que ela seja, não é indício de religiosidade. O ser humano, enquanto estiver neste mundo é falível, fraco, limitado e cheio de imperfeições. E cabe a cada um de nós procurar viver da melhor maneira possível sem fazer os outros sofrerem. Agora quando o erro, desejos, vontades dos outros violam, violentam, ultrajam o nosso próprio ser, precisamos de fazer algo.

Outra coisa: morrer não é solução para coisa alguma. Nem morrer em certas guerras resolve os problemas. Tirar a vida, resolve menos ainda. Creio piamente que todos temos uma vocação, um chamado, uma missão para cumprir enquanto velejamos pelo mar da vida. E nenhuma outra pessoa pode cumpri-la em nosso lugar. Por isso valorizo muito a vida. Creio na vida! Amo a vida, apesar de saber que a qualquer momento ela poderá escapar-me das mãos.

Um ponto que me despertou a atenção foi a falta de informação do seu marido por ocasião do casamento. A insensibilidade com que a tratou, como lidou com a situação. Infelizmente é uma atitude muito comum ainda hoje.
Por falar em sexo, não creio que pessoa alguma seja obrigada a praticar sexo sem vontade. Aliás quanto eu entenda é considerado crime de estupramento. Não creio em sexo para provar nada. Não creio em sexo para satisfazer um, contra a vontade do outro. Sexo é o resultado de um bom relacionamento, um bom entrosamento. É o coroamento de um relacionamento gostoso. Aliás, de acordo com a Bíblia, ele está associado ao companheirismo entre o homem e a mulher, instituído no Céu. Sexo à força, por obrigação, eu não conheço nem creio ser o tipo desejado e recomendado por Deus.

Agora, há um lado difícil. À medida que a gente vai entrando nos anos, certas características vão ficando mais definidas. Quando se chega à menopausa e à reforma, surge uma crise muito grande na vida. Talvez fosse bom esperar que passe essa crise. É uma fase muito difícil para os dois. Não creio que isto conforte você, mas alguns casais que conseguem transpor esta crise depois se aceitam melhor e acabam tendo um fim de vida mais tranquilo. Mas para isso acontecer precisam de discutir, brigar - sem se agredir fisicamente - conversar muito. Fazer uma verdadeira limpeza por dentro de todas as mágoas acumuladas através das primaveras e outonos da vida. Enquanto há raiva, há esperança, porque em geral temos raiva de quem amamos. O pior é a indiferença, a apatia e a passividade sentimental.

Disse para você que ia deixar a sua carta falar sozinha e aqui estou, com a cabeça cheia de coisas para escrever. Não vou fazê-lo. Vou deixar muitas das suas perguntas no ar. Talvez porque para algumas eu também não tenha resposta e é justamente aí que está o valor delas. Deixar que cada um pense!
Coragem! Sucesso na sua vida. A resposta virá... sempre há uma porta para ser aberta. É só continuar.

Dr. Belisário Marques, Psicólogo  -  Revista  Mocidade,  Casa Publicadora Brasileira

"O amor não é o resultado de uma satisfação sexual adequada; pelo contrário, a felicidade sexual é o resultado do amor."
Erich Fromm