A LONGA JORNADA
Enquanto me dirigia para Cheng Tsuen, resolvi que eu mesma levaria as crianças para Xensi. Era impossível mantê-las na área de combate por mais tempo, e por essa altura já se podia perceber que alguma coisa devia ter acontecido ao Sr. Lu.
Demorou muito para eu ficar a saber que ele tinha conseguido passar a salvo com o grupo de crianças, e estava a voltar quando foi preso e levado para ser julgado por um tribunal militar. Como o seu dialeto era de Tsincheng, que estava ocupada pelo inimigo, as autoridades recusaram-se a crer na história dele, e prenderam-no sob a suspeita de ser um espião japonês.
Os meus amigos tentaram dissuadir-me da viagem.
- Estamos a muitos quilómetros de Siã, e a senhora não tem comida nem dinheiro para transportar 100 crianças. Pode ser que consiga atravessar se for sozinha, mas não com esse bando de pequeninos - disseram.
- O Senhor cuidará de nós - repliquei. - Creio que estas crianças precisam de ir para Xensi, e não há mais ninguém que possa levá-las. Digam para os maiorzinhos que aprontem os menores, e digam que vamos dar um longo e lindo passeio.
- Mas para que lado a senhora irá? Os japoneses controlam todas as estradas!
- Então precisaremos de atravessar as montanhas e descer até ao rio Amarelo.
- Cruzar as montanhas com todas estas crianças? A senhora deve estar louca!
- Elas não estão a salvo aqui. Qualquer dia destes podem ser bombardeadas e morrer. Há perigo para elas por toda a parte, até que cheguem à região livre da China.
Procurei o prefeito e pedi cereais para a viagem. Depois de muito argumentar, ele disse:
- Dar-lhe-ei o suficiente para chegar à próxima cidade, Ai-weh-deh, e mandarei dois homens para carregar o alimento para a senhora. Admiro a sua coragem, mas é uma loucura.
Saímos bem cedinho na manhã seguinte - cem crianças, cujas idades iam desde menos de três anos até dezasseis.
No começo, algumas delas, excitadas, iam correndo à frente, outras caminhavam sem pressa, e ainda outras precipitavam-se a esmo. Mas à medida que vencíamos a distância, acalmaram-se e contentaram-se em seguir a estrada. As maiores ajudavam as menores, muitas veres carregando-as às costas.
Os dois homens viajaram connosco aquele primeiro dia, e, no dia seguinte, recrutei dois na próxima vila. Os habitantes das cidades e vilarejos ajudavam-nos se podiam, mas a comida andava escassa.
Em muitos lugares não havia estrada, apenas uma trilha de mulas, e a caminhada era morro acima. Dormíamos à beira da estrada ou nos templos. Certa vez pernoitámos num acampamento militar, mas geralmente dormíamos onde nos encontrávamos, a céu aberto. Não possuíamos cobertores, e, para manter-nos aquecidos durante a noite, apertávamo-nos uns contra aos outros. Pedíamos comida pelo caminho, mas muitas vezes o nosso jantar era uma sopa rala. À medida que os dias passavam, as crianças foram ficando irritadiças, dando sinais de exaustão, e muitas lágrimas eram vertidas.
- Ai-weh-deh, os meus pés estão a doer! Os meus sapatos estão furados! Ai-weh-deh, a minha barriga está doendo. Não consigo mais andar.
As crianças mais velhas estavam cansadas demais para carregar as menores, e as nossas marchas foram ficando cada vez mais curtas.
Eu fazia tudo o que podia para desviar a sua atenção das dores e sofrimentos, e fazê-las continuar a penosa caminhada. Cantávamos todos os hinos e corinhos que conhecíamos. Às vezes, eu começava a dizer um texto como: "Louva ao Senhor, ó minha alma", e as crianças respondiam: "E tudo o que há em mim, louve o Seu santo nome" ou então eu dizia: "Jesus Cristo veio a este mundo" e elas gritavam: "para salvar os pecadores". Um nó formava-se na minha garganta, e lágrimas subiam-me aos olhos ao ouvi-las cantar: "Conta as Muitas Bênçãos" quando, no momento, tinham tão poucas bênçãos para contar.
Por doze longos e exaustivos dias, e doze noites enregelantes, continuámos a nossa luta. Quanto distava ainda o rio Amarelo? Quantos dias ainda teríamos de caminhar? Quantas montanhas precisaríamos ainda de atravessar? Eram essas as primeiras perguntas que fazíamos ao chegar a alguma vila.
Afinal, escalámos a última cordilheira, e diante dos nossos olhos descortinou-se brilhando ao sol, qual fita dourada a nos acenar, o rio Amarelo!
- Olhem, lá está Yuen Chu! - gritaram as crianças mais velhas para as menores. - Quando chegarmos lá, teremos o que comer e poderemos remar e nadar.
Mas a pequena cidade de Yuen Chu, localizada nas margens do rio, estava deserta. As casas, vazias. Não havia alimento algum, e as crianças, desapontadas, choraram amargamente.
Finalmente, encontrei alguns soldados.
- Podem dar-nos um pouco de comida? - implorei.
- Quantos são?
- Cem crianças.
- É impossível dar de comer a tanta gente.
Somente temos rações para três dias, e só para nós. Daremos um pouco a vocês, mas de que valerá isso para cem?
- Será que existe alguma comida na cidade?
- Nem um bocadinho! A cidade foi evacuada. Os japoneses estão para chegar. O nosso exército bateu em retirada para o outro lado do rio, e não deixou nada para o inimigo.
Fizemos uma sopa rala e tomámo-la à beira da estrada, e a seguir levei o meu grupo desanimado, desapontado, exausto, até ao rio, perto da balsa (ferry boat).
- Se ficarmos aqui, tomaremos o primeiro barco amanhã cedo - disse, com tanto entusiasmo quanto pude conseguir. Banhámos os pés cansados e deitámo-nos na margem do rio para dormir.
As crianças acordaram muito antes do dia raiar. - Estamos com tanta fome, Ai-weh-deh. Não há comida para nós? - perguntavam.
- Logo estaremos do outro lado do rio, e há muita comida lá. Não vai demorar muito para os barcos chegarem.
Esperámos, forçando os olhos para ver na outra margem. Mas, muito tempo depois do dia clarear, não víamos nem sinal de movimento no outro lado. Percebi, então, que os barcos tinham parado de funcionar, mas nada disse às crianças, embora as mais velhinhas também logo o percebessem.
Finalmente, chamei seis dos meninos mais velhos.
- Voltaremos à cidade para ver se conseguimos encontrar alguma coisa. Os outros precisam de ficar aqui, caso a balsa chegue.
Caminhámos até à sede do acampamento militar, onde perguntei ao capitão:
- Algum barco vai atravessar o rio hoje?
- O rio está fechado. Não vai haver barco nenhum, porque estão todos do outro lado.
- Mas, e a balsa?
- Ela também está fechada. Não há nada que possamos fazer. Os japoneses estão para chegar a qualquer momento.
Caí de joelhos diante deles e implorei que dessem comida para as minhas crianças, mas nada fizeram. Fui a outro posto militar e pedi uma vez mais. O pessoal ali mal podia acreditar que o que lhes dizia era verdade.
- De onde a senhora está vindo?
- Caminhámos de Yangcheng pelas montanhas. Foi uma viagem terrível.
- Dar-lhes-emos um pouco de comida, mas só temos o bastante para as crianças menores. Não podemos alimentar a todos, de forma alguma.
Eu estava quase desesperada. A noite toda preocupava-me e orava, orava e preocupava-me. Minhas forças chegavam ao fim.
Se pelo menos não estivesse sobrecarregada com todas essas crianças, pensei com amargura. Ninguém mais se importou com elas. Porque tive que me meter a mim e a elas nesta situação?
Então, uma voz falou: "Morri por essas crianças e amei a cada uma delas. Dei-lhas para que, por amor de Mim, tomasse conta delas."
Assim, as horas foram passando até o raiar do dia. Uma menina de treze anos, chamada Sualan, veio e ficou parada ao meu lado.
-Ai-weh-deh, a senhora se lembra que quando Deus chamou a Moisés, ele fez o povo de Israel atravessar o mar Vermelho a seco, e todos eles chegaram a salvo do outro lado?
Sacudi a cabeça, assentindo. Sualan sorriu docemente para mim, ao perguntar:
- A senhora acredita nessa história?
- É claro que acredito! - repliquei prontamente.
- Jamais ensinaria a vocês alguma coisa em que não acreditasse.
- Então, por que nós não atravessamos? - perguntou ela com simplicidade.
Essa pergunta me sacudiu.
- Mas eu não sou Moisés - falei, com voz entrecortada.
- É claro que não, mas o Senhor ainda é Deus!
Foi como se tivesse recebido um golpe físico. Todos esses anos em que estivera a pregar, acreditara realmente que Moisés tinha feito o povo de Israel atravessar o mar Vermelho? Acreditara que as águas se tinham afastado e erguido quais muros dos dois lados enquanto eles passavam a pé enxuto? Eu apostara a minha vida no grandioso poder de Deus. Por que duvidava agora?
Voltei-me para Sualan.
- Vamos atravessar - disse-lhe.
E realmente acreditava que sim. Sualan chamou algumas das crianças mais velhas para se reunirem connosco e ajoelhámo-nos em oração. Sualan orou com simplicidade: "Estamos aqui, Senhor, apenas à espera que o Senhor abra o rio Amarelo para nós."
Curvei-me em silêncio, mas no meu coração dizia: "Ó Deus, este é o meu fim. Nada mais posso fazer. Cheguei ao fim. Nada sou. És somente tu, Senhor, agora. Ó Deus, não nos desampares. Salva-nos, prova que és poderoso".
Alguns dos meninos menores vieram a correr.
- Levantem-se, levantem-se! - gritaram. - Há um homem grande aqui!
Ao me levantar, eu tremia da cabeça aos pés. Um oficial chinês estava a observar-me.
- A senhora é a responsável por estas crianças? - perguntou.
- Sim.
- Quantas são?
- 100.
- O que estão a fazer aqui?
- Esperando para atravessar o rio.
- Mas, quem é a senhora?
- Sou Ai-weh-deh, da missão de Yangcheng.
- A senhora está louca? Não sabe que estamos esperando um ataque japonês a qualquer momento? Não sabe que aviões japoneses estão patrulhando o tempo todo? Se virem estas crianças, vão passar fogo nelas. E por falar nisso, quem são estas crianças?
- Somos refugiados tentando chegar a Sian.
- Refugiados! Então por que não atravessaram o rio há muito tempo atrás?
- Não conseguimos barco.
- A senhora não esperava que deixássemos barcos para os japoneses, ou esperava?! Mas vou fazer um sinal pedindo um agora.
Ele deu um assobio longo e grave, como o de um pássaro marinho: "Uu-Uu-Uu" e ergueu o braço.
- O barco virá imediatamente. Há um vilarejo do outro lado onde a senhora pode conseguir alimento.
- Oh, muito obrigada.
- Está cuidando sozinha de todas estas crianças?
- Sim.
- Mas a senhora é estrangeira, não é?
- Sim.
- Escolheu uma estranha ocupação.
Mal ele acabara de falar e as crianças gritaram excitadas que o barco estava a vir. O barco precisou de fazer diversas viagens.
As pessoas da cidade levaram as crianças para as suas casas e deram-lhes de comer até não conseguirem mais. Então, as crianças contaram a viagem terrível que tinham feito através das montanhas.
- Todos nós, os maiores, ajudávamos a carregar os pequeninos - gabavam-se. - E Ai-weh-deh estava sempre carregando um ou dois dos doentes. E quando chegámos ao rio, esperámos, e esperámos por um barco. Orámos para que o rio se abrisse para que pudéssemos atravessar como o povo de Israel atravessou o mar Vermelho, mas Deus sabia que estávamos tão cansados de andar que Ele mandou um barco, e assim foi muito melhor.
Depois de descansarmos alguns dias, partimos outra vez mais, em direcção a Mienchin, onde tomaríamos um comboio que nos levaria a Siã, que ainda estava longe.
As crianças nunca tinham visto um comboio. Ao primeiro sopro da locomotiva e ao silvar do apito, soou um forte grito de terror, e as crianças desapareceram. Tiveram de ser retiradas de debaixo de carroças, de dentro de barris, de atrás de portas. Com dificuldade, foram persuadidas a embarcar.
Em Xanchow o comboio parou. Um carregador gritou:
- Desçam todos, desçam todos. Este comboio não vai continuar, precisam de descer.
- Mas há trilhos à nossa frente; posso vê-los - argumentei.
- Escute, dona - disse ele com impaciência.
- Esses trilhos passam perto do rio. Os japoneses estão do outro lado, e nas partes estreitas do rio. Eles atiram. Compreende?
- Mas, o que podemos fazer?
- Daqui por diante, só andando. Vê aquelas montanhas? A senhora atravessa-as e desce. Então pode tomar o comboio novamente.
- Mas aquelas montanhas têm mais de mil metros de altura, e levamos bebés connosco. Já estamos exaustos. Como poderemos atravessar?
- Como é que vou saber? É melhor procurar o chefe da estação.
Implorei ao chefe da estação:
- Por favor, senhor, não nos pode ajudar? Tenho cem crianças exaustas. Já faz vinte dias que estamos a caminho. As crianças não conseguirão transpor aquelas montanhas.
- Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer. Este comboio não vai adiante, por isso todos têm de desembarcar. Há um barracão ali adiante onde podem passar a noite, e o pessoal dos refugiados lhes dará de comer.
- Oh, por favor, senhor, deve haver alguma coisa que passa fazer para nos ajudar a chegar a Siã.
- Senhora, há milhões de refugiados por toda a China.
- Mas estes são crianças!
- Senhora, não há nada mais que eu possa fazer. Se desejar continuar, o único jeito é transpor aquelas montanhas. Mandarei dois soldados com a senhora. Só existe uma passagem aberta. Os japoneses estão de um lado e o nosso exército do outro, mas os soldados ajudá-la-ão a atravessar.
- Quanto tempo levaremos?
- Se partir bem cedinho, deve chegar a Tungkwan em dois dias.
Ergui os olhos para as montanhas, cujos topos estavam ocultos pelas nuvens. Pelo que podia ver, havia apenas uma ténue trilha de mulas.
- Muito obrigada - disse. - Se não existe outra maneira, temos de fazer a tentativa. Estaremos prontos para partir de madrugada.
Não consegui dormir. A jornada que nos estava pela frente seria uma provação até para os mais fortes, e alguns estavam doentes. Mas o que podia fazer? Não podíamos voltar, e não podíamos ficar ali. Precisava de levar as crianças para a segurança, não importava o que isso me custasse.
A jornada foi bem pior do que qualquer outra que já fizéramos. As trilhas da montanha eram escarpadas e em muitos lugares tinham desaparecido de vez. Tínhamos de nos arrastar sobre pedras soltas e escorregar por encostas íngremes. A viagem foi um pesadelo e, sem a ajuda dos soldados, muitas das crianças jamais teriam chegado. Tínhamos de vigiá-las pois escorregavam constantemente. Os soldados e eu tínhamos de carregar uma, às vezes duas crianças durante o tempo todo, e constantemente animar as outras a prosseguirem.
Dormimos na montanha nua e depois arrastámo-nos com dificuldade por mais um longo dia. À noite, chegámos a Tungkwan e ficámos entusiasmados ao avistar a estação ferroviária. Não obstante, os oficiais sacudiram a cabeça.
- Não há mais trens daqui para a frente; é muito perigoso.
- Mas o que podemos fazer? - a minha voz elevou-se em desespero. - Caminhámos desde Sanchow através das montanhas e, antes, tínhamos andado vinte dias desde Yangcheng. Vamos para as partes livres da China, para os orfanatos da Sra. Chiang. Eles estão à nossa espera. Não há nada que possa fazer? As minhas crianças não conseguem andar mais; muitas estão doentes.
- Se a ajudar, está disposta a obedecer às minhas instruções implicitamente?
- Sim, se com isso conseguir fazer que as crianças cheguem ao seu destino.
- Está disposta a enfrentar por conta própria o risco da viagem?
- Sim, oh, sim!
- Então vou contar-lhe um segredo. Existe um comboio que vai até lá. Todas as manhãs, antes do raiar do dia, um comboio de carvão vai até Hua Xan. Às vezes onde o rio é estreito, os japoneses atiram, mas às vezes não atiram. Se ouvirem vozes, ou virem gente é garantido que atirarão. A senhora promete fazer as crianças ficarem quietas?
- Oh, sim. Farei com que não se mexam nem façam barulho algum.
- Então, amanhã, antes do dia clarear, encontrarão o comboio de carvão esperando aqui. Embarquem nele. Mas se dão importância à vida, mantenham as cabeças abaixadas. E boa sorte, senhora! Admiro a sua coragem.
Acomodámo-nos nos campos, e quando os menorzinhos adormeceram, chamei Sualan e os outros meninos e meninas mais velhos.
- Ouçam cuidadosamente - disse-lhes. - Vocês todos têm idade suficiente para compreender que esta noite precisamos de manter os pequeninos absolutamente quietos. Se fizerem o menor ruído, os japoneses atirarão em nós. Precisam de dormir um pouco, mas quando eu vos acordar, terão de carregar os pequeninos e colocá-los entre grandes pedaços de carvão dentro do carro.
- Mas o que faremos se acordarem?
- Estão tão cansados que não acordarão, se vocês forem cuidadosos. Quando acordarem, já estaremos fora de perigo, compreendem?
- Sim, Ai-weh-deh.
- Então, vão dormir agora. Acordá-los-ei quando for a hora de partir.
- Mas, e a senhora, não vai dormir, Ai-weh-deh?
- Talvez tire uma soneca - respondi.
- Mas a senhora está doente, Ai-weh-deh; devia descansar. Tem estado doente há dias. A senhora carregou uma, às vezes duas crianças, o dia todo, e deu quase toda a sua comida para nós.
- O Senhor me ajudará. Descansarei quando chegarmos a Siã. Vamos, vocês precisam de dormir.
Estendi-me no chão nu, cada osso do meu corpo doendo, mas o coração emocionado com o amor e compaixão que as crianças demonstravam por mim.
- Por favor, meu Deus, dá-me forças para levá-las até onde receberão os devidos cuidados - orei. - Ajuda-nos para que todos cheguemos a Siã.
Depois de algumas horas, acordei os mais velhinhos e, em silêncio, carregámos os pequenos, um a um, e os colocámos suavemente em cima do carvão. As pelotas duras não os perturbaram pois tinham dormido fora tantas noites, e, além disso, estavam totalmente exaustos pela jornada dos dois últimos dias.
Nenhum tiro foi disparado. Quando os pequeninos finalmente acordaram, gritaram e riram ao ver os companheiros cobertos de carvão.
- Vocês ficaram pretos durante a noite - diziam rindo. E, com a facilidade de recuperação própria da infância, por algum tempo ficaram tão alegres quanto os grilos.
Uma vez mais tivemos de deixar o comboio e, com as roupas imundas, partimos para a nossa última caminhada. Só três dias até Siã, disseram-nos. Esmolávamos comida aos soldados e nos vilarejos; dormíamos à beira da estrada, e continuámos a tentar cantar até que, finalmente, Siã, que aos nossos olhos era algo como a Cidade Celestial, estava diante de nós.
Os nossos pés exaustos apressaram-se, mas tivemos de parar, desanimados. Os portões da cidade estavam fechados e, embora eu implorasse, o guarda recusou-se a abri-los.
- A senhora não pode entrar aqui - gritou. - Os portões da cidade estão fechados para refugiados. A cidade já está fervilhando com eles. Não há comida. Nada. Precisa de procurar outro lugar.
- Mas temos dinheiro à nossa espera. Faz vinte e sete dias que estamos na estrada. Disseram-nos que viéssemos para aqui. O senhor precisa de nos deixar entrar, sim!
Este último desapontamento foi demais para mim. Arrastámo-nos lentamente à volta dos muros da cidade, mas todos os portões estavam fechados. Que podia eu fazer? Para onde poderíamos ir?
Então, alguém condoeu-se de nós e disse-me que havia um templo budista em Fu-Feng, onde recolhiam crianças e cuidavam delas. Distava apenas um dia de viagem de comboio, e era um dos orfanatos da Sra. Chiang.
Nessa altura, eu estava doente demais para me lembrar do que aconteceu então. Devemos ter tomado o comboio, pois quando chegámos ao orfanato, havia cama e comida à nossa espera. Finalmente, as minhas crianças estavam a salvo! O meu trabalho estava terminado.
Na manhã seguinte, reuni-as e disse-lhes: "Vamos agradecer a Deus o Seu amor para connosco." Recitámos "0 Senhor é o meu pastor" juntos, e despedi-me delas.
O pessoal do orfanato implorou-me que ficasse e descansasse, mas na minha mente reinava o tumulto. Não conseguia descansar; precisava de continuar. Havia tanto para ser feito! "Deus cuidará de mim", eu ficava a repetir, e saí a pregar nos vilarejos.
Não me lembro do que aconteceu depois até me encontrar num hospital em Siã. Aos poucos, fui descobrindo o que sucedera.
Eu tentara pregar num vilarejo, mas perdera os sentidos. Ninguém sabia quem eu era, e um menino foi em busca do missionário norte-americano que arranjou um carro de bois para me levar à casa da missão. Em dois dias, chegou um médico do hospital de Siã que meneou a cabeça ao ver o estado em que me encontrava.
- Há pouquíssima esperança; ela está com pneumonia e tifo. Vocês sabem quem é ela?
- Não temos a menor ideia. Ela não disse uma palavra sequer desde que a trouxemos para cá.
- Se pudéssemos levá-la para o hospital, haveria uma possibilidade de salvá-la. É uma viagem longa, mas se conseguíssemos acrescentar um vagão de transporte de gado ao comboio da meia-noite, poderíamos levá-la assim como está, nesta cama.
Fui levada naquele vagão de gado e mais tarde fiquei a saber que amigos bondosos e desconhecidos fizeram a viagem de joelhos ao redor da cama mantendo-a firme durante a jornada. Eles mal ousavam esperar que eu chegasse com vida a Siã.
De repente, para surpresa deles, comecei a cantar um hino; depois orei e preguei um sermão sobre o filho pródigo. Eles não podiam compreender tudo o que eu dizia, pois o dialecto que eu falava era do norte, mas ainda assim acreditavam que eu fosse chinesa.
No hospital, travou-se uma batalha pela minha vida.
- Ela devia estar morta há muito tempo - disse o médico. - Ela tem malária, tifo, pneumonia, subnutrição, exaustão total e provavelmente diversas outras desordens menores.
Eu estava doente demais para falar, e, por mais de um mês, estive prostrada naquele hospital, mal tomando consciência do que me cercava. Então, como que por milagre, o Sr. Lu de Yangcheng, chegou a Siã. Ele fora posto em liberdade e saíra prontamente em busca do outro grupo de crianças e de mim.
O pastor chinês levou o Sr. Lu para me visitar, e ele regozijou-se muito ao descobrir que eu ainda estava viva.
- Ela veio de Yangcheng, no norte da China - disse ele aos médicos e às enfermeiras.
- Mas então o que está a fazer aqui em Siã a centenas de quilómetros?
- Ela veio trazer para a liberdade crianças que estavam na região ocupada pelos japoneses.
- Qual é o nome dela?
- Só sei o nome chinês, Ai-weh-deh, mas um menino que ela trouxe de Yangcheng tem um livro que pertencia a ela. É um livro em inglês e tem alguma coisa escrita nele.
Acabaram encontrando o livro, e na contracapa estava escrito em inglês: "Para Gladys, da tia Bessie".
Eles olharam-me estarrecidos. Seria possível que eu não fosse chinesa?!
Adaptado do livro APENAS UMA PEQUENA MULHER - Biografia de Gladys Aylward com Christine Hunter
Enquanto me dirigia para Cheng Tsuen, resolvi que eu mesma levaria as crianças para Xensi. Era impossível mantê-las na área de combate por mais tempo, e por essa altura já se podia perceber que alguma coisa devia ter acontecido ao Sr. Lu.
Demorou muito para eu ficar a saber que ele tinha conseguido passar a salvo com o grupo de crianças, e estava a voltar quando foi preso e levado para ser julgado por um tribunal militar. Como o seu dialeto era de Tsincheng, que estava ocupada pelo inimigo, as autoridades recusaram-se a crer na história dele, e prenderam-no sob a suspeita de ser um espião japonês.
Os meus amigos tentaram dissuadir-me da viagem.
- Estamos a muitos quilómetros de Siã, e a senhora não tem comida nem dinheiro para transportar 100 crianças. Pode ser que consiga atravessar se for sozinha, mas não com esse bando de pequeninos - disseram.
- O Senhor cuidará de nós - repliquei. - Creio que estas crianças precisam de ir para Xensi, e não há mais ninguém que possa levá-las. Digam para os maiorzinhos que aprontem os menores, e digam que vamos dar um longo e lindo passeio.
- Mas para que lado a senhora irá? Os japoneses controlam todas as estradas!
- Então precisaremos de atravessar as montanhas e descer até ao rio Amarelo.
- Cruzar as montanhas com todas estas crianças? A senhora deve estar louca!
- Elas não estão a salvo aqui. Qualquer dia destes podem ser bombardeadas e morrer. Há perigo para elas por toda a parte, até que cheguem à região livre da China.
Procurei o prefeito e pedi cereais para a viagem. Depois de muito argumentar, ele disse:
- Dar-lhe-ei o suficiente para chegar à próxima cidade, Ai-weh-deh, e mandarei dois homens para carregar o alimento para a senhora. Admiro a sua coragem, mas é uma loucura.
Saímos bem cedinho na manhã seguinte - cem crianças, cujas idades iam desde menos de três anos até dezasseis.
No começo, algumas delas, excitadas, iam correndo à frente, outras caminhavam sem pressa, e ainda outras precipitavam-se a esmo. Mas à medida que vencíamos a distância, acalmaram-se e contentaram-se em seguir a estrada. As maiores ajudavam as menores, muitas veres carregando-as às costas.
Os dois homens viajaram connosco aquele primeiro dia, e, no dia seguinte, recrutei dois na próxima vila. Os habitantes das cidades e vilarejos ajudavam-nos se podiam, mas a comida andava escassa.
Em muitos lugares não havia estrada, apenas uma trilha de mulas, e a caminhada era morro acima. Dormíamos à beira da estrada ou nos templos. Certa vez pernoitámos num acampamento militar, mas geralmente dormíamos onde nos encontrávamos, a céu aberto. Não possuíamos cobertores, e, para manter-nos aquecidos durante a noite, apertávamo-nos uns contra aos outros. Pedíamos comida pelo caminho, mas muitas vezes o nosso jantar era uma sopa rala. À medida que os dias passavam, as crianças foram ficando irritadiças, dando sinais de exaustão, e muitas lágrimas eram vertidas.
- Ai-weh-deh, os meus pés estão a doer! Os meus sapatos estão furados! Ai-weh-deh, a minha barriga está doendo. Não consigo mais andar.
As crianças mais velhas estavam cansadas demais para carregar as menores, e as nossas marchas foram ficando cada vez mais curtas.
Eu fazia tudo o que podia para desviar a sua atenção das dores e sofrimentos, e fazê-las continuar a penosa caminhada. Cantávamos todos os hinos e corinhos que conhecíamos. Às vezes, eu começava a dizer um texto como: "Louva ao Senhor, ó minha alma", e as crianças respondiam: "E tudo o que há em mim, louve o Seu santo nome" ou então eu dizia: "Jesus Cristo veio a este mundo" e elas gritavam: "para salvar os pecadores". Um nó formava-se na minha garganta, e lágrimas subiam-me aos olhos ao ouvi-las cantar: "Conta as Muitas Bênçãos" quando, no momento, tinham tão poucas bênçãos para contar.
Por doze longos e exaustivos dias, e doze noites enregelantes, continuámos a nossa luta. Quanto distava ainda o rio Amarelo? Quantos dias ainda teríamos de caminhar? Quantas montanhas precisaríamos ainda de atravessar? Eram essas as primeiras perguntas que fazíamos ao chegar a alguma vila.
Afinal, escalámos a última cordilheira, e diante dos nossos olhos descortinou-se brilhando ao sol, qual fita dourada a nos acenar, o rio Amarelo!
- Olhem, lá está Yuen Chu! - gritaram as crianças mais velhas para as menores. - Quando chegarmos lá, teremos o que comer e poderemos remar e nadar.
Mas a pequena cidade de Yuen Chu, localizada nas margens do rio, estava deserta. As casas, vazias. Não havia alimento algum, e as crianças, desapontadas, choraram amargamente.
Finalmente, encontrei alguns soldados.
- Podem dar-nos um pouco de comida? - implorei.
- Quantos são?
- Cem crianças.
- É impossível dar de comer a tanta gente.
Somente temos rações para três dias, e só para nós. Daremos um pouco a vocês, mas de que valerá isso para cem?
- Será que existe alguma comida na cidade?
- Nem um bocadinho! A cidade foi evacuada. Os japoneses estão para chegar. O nosso exército bateu em retirada para o outro lado do rio, e não deixou nada para o inimigo.
Fizemos uma sopa rala e tomámo-la à beira da estrada, e a seguir levei o meu grupo desanimado, desapontado, exausto, até ao rio, perto da balsa (ferry boat).
- Se ficarmos aqui, tomaremos o primeiro barco amanhã cedo - disse, com tanto entusiasmo quanto pude conseguir. Banhámos os pés cansados e deitámo-nos na margem do rio para dormir.
As crianças acordaram muito antes do dia raiar. - Estamos com tanta fome, Ai-weh-deh. Não há comida para nós? - perguntavam.
- Logo estaremos do outro lado do rio, e há muita comida lá. Não vai demorar muito para os barcos chegarem.
Esperámos, forçando os olhos para ver na outra margem. Mas, muito tempo depois do dia clarear, não víamos nem sinal de movimento no outro lado. Percebi, então, que os barcos tinham parado de funcionar, mas nada disse às crianças, embora as mais velhinhas também logo o percebessem.
Finalmente, chamei seis dos meninos mais velhos.
- Voltaremos à cidade para ver se conseguimos encontrar alguma coisa. Os outros precisam de ficar aqui, caso a balsa chegue.
Caminhámos até à sede do acampamento militar, onde perguntei ao capitão:
- Algum barco vai atravessar o rio hoje?
- O rio está fechado. Não vai haver barco nenhum, porque estão todos do outro lado.
- Mas, e a balsa?
- Ela também está fechada. Não há nada que possamos fazer. Os japoneses estão para chegar a qualquer momento.
Caí de joelhos diante deles e implorei que dessem comida para as minhas crianças, mas nada fizeram. Fui a outro posto militar e pedi uma vez mais. O pessoal ali mal podia acreditar que o que lhes dizia era verdade.
- De onde a senhora está vindo?
- Caminhámos de Yangcheng pelas montanhas. Foi uma viagem terrível.
- Dar-lhes-emos um pouco de comida, mas só temos o bastante para as crianças menores. Não podemos alimentar a todos, de forma alguma.
Eu estava quase desesperada. A noite toda preocupava-me e orava, orava e preocupava-me. Minhas forças chegavam ao fim.
Se pelo menos não estivesse sobrecarregada com todas essas crianças, pensei com amargura. Ninguém mais se importou com elas. Porque tive que me meter a mim e a elas nesta situação?
Então, uma voz falou: "Morri por essas crianças e amei a cada uma delas. Dei-lhas para que, por amor de Mim, tomasse conta delas."
Assim, as horas foram passando até o raiar do dia. Uma menina de treze anos, chamada Sualan, veio e ficou parada ao meu lado.
-Ai-weh-deh, a senhora se lembra que quando Deus chamou a Moisés, ele fez o povo de Israel atravessar o mar Vermelho a seco, e todos eles chegaram a salvo do outro lado?
Sacudi a cabeça, assentindo. Sualan sorriu docemente para mim, ao perguntar:
- A senhora acredita nessa história?
- É claro que acredito! - repliquei prontamente.
- Jamais ensinaria a vocês alguma coisa em que não acreditasse.
- Então, por que nós não atravessamos? - perguntou ela com simplicidade.
Essa pergunta me sacudiu.
- Mas eu não sou Moisés - falei, com voz entrecortada.
- É claro que não, mas o Senhor ainda é Deus!
Foi como se tivesse recebido um golpe físico. Todos esses anos em que estivera a pregar, acreditara realmente que Moisés tinha feito o povo de Israel atravessar o mar Vermelho? Acreditara que as águas se tinham afastado e erguido quais muros dos dois lados enquanto eles passavam a pé enxuto? Eu apostara a minha vida no grandioso poder de Deus. Por que duvidava agora?
Voltei-me para Sualan.
- Vamos atravessar - disse-lhe.
E realmente acreditava que sim. Sualan chamou algumas das crianças mais velhas para se reunirem connosco e ajoelhámo-nos em oração. Sualan orou com simplicidade: "Estamos aqui, Senhor, apenas à espera que o Senhor abra o rio Amarelo para nós."
Curvei-me em silêncio, mas no meu coração dizia: "Ó Deus, este é o meu fim. Nada mais posso fazer. Cheguei ao fim. Nada sou. És somente tu, Senhor, agora. Ó Deus, não nos desampares. Salva-nos, prova que és poderoso".
Alguns dos meninos menores vieram a correr.
- Levantem-se, levantem-se! - gritaram. - Há um homem grande aqui!
Ao me levantar, eu tremia da cabeça aos pés. Um oficial chinês estava a observar-me.
- A senhora é a responsável por estas crianças? - perguntou.
- Sim.
- Quantas são?
- 100.
- O que estão a fazer aqui?
- Esperando para atravessar o rio.
- Mas, quem é a senhora?
- Sou Ai-weh-deh, da missão de Yangcheng.
- A senhora está louca? Não sabe que estamos esperando um ataque japonês a qualquer momento? Não sabe que aviões japoneses estão patrulhando o tempo todo? Se virem estas crianças, vão passar fogo nelas. E por falar nisso, quem são estas crianças?
- Somos refugiados tentando chegar a Sian.
- Refugiados! Então por que não atravessaram o rio há muito tempo atrás?
- Não conseguimos barco.
- A senhora não esperava que deixássemos barcos para os japoneses, ou esperava?! Mas vou fazer um sinal pedindo um agora.
Ele deu um assobio longo e grave, como o de um pássaro marinho: "Uu-Uu-Uu" e ergueu o braço.
- O barco virá imediatamente. Há um vilarejo do outro lado onde a senhora pode conseguir alimento.
- Oh, muito obrigada.
- Está cuidando sozinha de todas estas crianças?
- Sim.
- Mas a senhora é estrangeira, não é?
- Sim.
- Escolheu uma estranha ocupação.
Mal ele acabara de falar e as crianças gritaram excitadas que o barco estava a vir. O barco precisou de fazer diversas viagens.
As pessoas da cidade levaram as crianças para as suas casas e deram-lhes de comer até não conseguirem mais. Então, as crianças contaram a viagem terrível que tinham feito através das montanhas.
- Todos nós, os maiores, ajudávamos a carregar os pequeninos - gabavam-se. - E Ai-weh-deh estava sempre carregando um ou dois dos doentes. E quando chegámos ao rio, esperámos, e esperámos por um barco. Orámos para que o rio se abrisse para que pudéssemos atravessar como o povo de Israel atravessou o mar Vermelho, mas Deus sabia que estávamos tão cansados de andar que Ele mandou um barco, e assim foi muito melhor.
Depois de descansarmos alguns dias, partimos outra vez mais, em direcção a Mienchin, onde tomaríamos um comboio que nos levaria a Siã, que ainda estava longe.
As crianças nunca tinham visto um comboio. Ao primeiro sopro da locomotiva e ao silvar do apito, soou um forte grito de terror, e as crianças desapareceram. Tiveram de ser retiradas de debaixo de carroças, de dentro de barris, de atrás de portas. Com dificuldade, foram persuadidas a embarcar.
Em Xanchow o comboio parou. Um carregador gritou:
- Desçam todos, desçam todos. Este comboio não vai continuar, precisam de descer.
- Mas há trilhos à nossa frente; posso vê-los - argumentei.
- Escute, dona - disse ele com impaciência.
- Esses trilhos passam perto do rio. Os japoneses estão do outro lado, e nas partes estreitas do rio. Eles atiram. Compreende?
- Mas, o que podemos fazer?
- Daqui por diante, só andando. Vê aquelas montanhas? A senhora atravessa-as e desce. Então pode tomar o comboio novamente.
- Mas aquelas montanhas têm mais de mil metros de altura, e levamos bebés connosco. Já estamos exaustos. Como poderemos atravessar?
- Como é que vou saber? É melhor procurar o chefe da estação.
Implorei ao chefe da estação:
- Por favor, senhor, não nos pode ajudar? Tenho cem crianças exaustas. Já faz vinte dias que estamos a caminho. As crianças não conseguirão transpor aquelas montanhas.
- Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer. Este comboio não vai adiante, por isso todos têm de desembarcar. Há um barracão ali adiante onde podem passar a noite, e o pessoal dos refugiados lhes dará de comer.
- Oh, por favor, senhor, deve haver alguma coisa que passa fazer para nos ajudar a chegar a Siã.
- Senhora, há milhões de refugiados por toda a China.
- Mas estes são crianças!
- Senhora, não há nada mais que eu possa fazer. Se desejar continuar, o único jeito é transpor aquelas montanhas. Mandarei dois soldados com a senhora. Só existe uma passagem aberta. Os japoneses estão de um lado e o nosso exército do outro, mas os soldados ajudá-la-ão a atravessar.
- Quanto tempo levaremos?
- Se partir bem cedinho, deve chegar a Tungkwan em dois dias.
Ergui os olhos para as montanhas, cujos topos estavam ocultos pelas nuvens. Pelo que podia ver, havia apenas uma ténue trilha de mulas.
- Muito obrigada - disse. - Se não existe outra maneira, temos de fazer a tentativa. Estaremos prontos para partir de madrugada.
Não consegui dormir. A jornada que nos estava pela frente seria uma provação até para os mais fortes, e alguns estavam doentes. Mas o que podia fazer? Não podíamos voltar, e não podíamos ficar ali. Precisava de levar as crianças para a segurança, não importava o que isso me custasse.
A jornada foi bem pior do que qualquer outra que já fizéramos. As trilhas da montanha eram escarpadas e em muitos lugares tinham desaparecido de vez. Tínhamos de nos arrastar sobre pedras soltas e escorregar por encostas íngremes. A viagem foi um pesadelo e, sem a ajuda dos soldados, muitas das crianças jamais teriam chegado. Tínhamos de vigiá-las pois escorregavam constantemente. Os soldados e eu tínhamos de carregar uma, às vezes duas crianças durante o tempo todo, e constantemente animar as outras a prosseguirem.
Dormimos na montanha nua e depois arrastámo-nos com dificuldade por mais um longo dia. À noite, chegámos a Tungkwan e ficámos entusiasmados ao avistar a estação ferroviária. Não obstante, os oficiais sacudiram a cabeça.
- Não há mais trens daqui para a frente; é muito perigoso.
- Mas o que podemos fazer? - a minha voz elevou-se em desespero. - Caminhámos desde Sanchow através das montanhas e, antes, tínhamos andado vinte dias desde Yangcheng. Vamos para as partes livres da China, para os orfanatos da Sra. Chiang. Eles estão à nossa espera. Não há nada que possa fazer? As minhas crianças não conseguem andar mais; muitas estão doentes.
- Se a ajudar, está disposta a obedecer às minhas instruções implicitamente?
- Sim, se com isso conseguir fazer que as crianças cheguem ao seu destino.
- Está disposta a enfrentar por conta própria o risco da viagem?
- Sim, oh, sim!
- Então vou contar-lhe um segredo. Existe um comboio que vai até lá. Todas as manhãs, antes do raiar do dia, um comboio de carvão vai até Hua Xan. Às vezes onde o rio é estreito, os japoneses atiram, mas às vezes não atiram. Se ouvirem vozes, ou virem gente é garantido que atirarão. A senhora promete fazer as crianças ficarem quietas?
- Oh, sim. Farei com que não se mexam nem façam barulho algum.
- Então, amanhã, antes do dia clarear, encontrarão o comboio de carvão esperando aqui. Embarquem nele. Mas se dão importância à vida, mantenham as cabeças abaixadas. E boa sorte, senhora! Admiro a sua coragem.
Acomodámo-nos nos campos, e quando os menorzinhos adormeceram, chamei Sualan e os outros meninos e meninas mais velhos.
- Ouçam cuidadosamente - disse-lhes. - Vocês todos têm idade suficiente para compreender que esta noite precisamos de manter os pequeninos absolutamente quietos. Se fizerem o menor ruído, os japoneses atirarão em nós. Precisam de dormir um pouco, mas quando eu vos acordar, terão de carregar os pequeninos e colocá-los entre grandes pedaços de carvão dentro do carro.
- Mas o que faremos se acordarem?
- Estão tão cansados que não acordarão, se vocês forem cuidadosos. Quando acordarem, já estaremos fora de perigo, compreendem?
- Sim, Ai-weh-deh.
- Então, vão dormir agora. Acordá-los-ei quando for a hora de partir.
- Mas, e a senhora, não vai dormir, Ai-weh-deh?
- Talvez tire uma soneca - respondi.
- Mas a senhora está doente, Ai-weh-deh; devia descansar. Tem estado doente há dias. A senhora carregou uma, às vezes duas crianças, o dia todo, e deu quase toda a sua comida para nós.
- O Senhor me ajudará. Descansarei quando chegarmos a Siã. Vamos, vocês precisam de dormir.
Estendi-me no chão nu, cada osso do meu corpo doendo, mas o coração emocionado com o amor e compaixão que as crianças demonstravam por mim.
- Por favor, meu Deus, dá-me forças para levá-las até onde receberão os devidos cuidados - orei. - Ajuda-nos para que todos cheguemos a Siã.
Depois de algumas horas, acordei os mais velhinhos e, em silêncio, carregámos os pequenos, um a um, e os colocámos suavemente em cima do carvão. As pelotas duras não os perturbaram pois tinham dormido fora tantas noites, e, além disso, estavam totalmente exaustos pela jornada dos dois últimos dias.
Nenhum tiro foi disparado. Quando os pequeninos finalmente acordaram, gritaram e riram ao ver os companheiros cobertos de carvão.
- Vocês ficaram pretos durante a noite - diziam rindo. E, com a facilidade de recuperação própria da infância, por algum tempo ficaram tão alegres quanto os grilos.
Uma vez mais tivemos de deixar o comboio e, com as roupas imundas, partimos para a nossa última caminhada. Só três dias até Siã, disseram-nos. Esmolávamos comida aos soldados e nos vilarejos; dormíamos à beira da estrada, e continuámos a tentar cantar até que, finalmente, Siã, que aos nossos olhos era algo como a Cidade Celestial, estava diante de nós.
Os nossos pés exaustos apressaram-se, mas tivemos de parar, desanimados. Os portões da cidade estavam fechados e, embora eu implorasse, o guarda recusou-se a abri-los.
- A senhora não pode entrar aqui - gritou. - Os portões da cidade estão fechados para refugiados. A cidade já está fervilhando com eles. Não há comida. Nada. Precisa de procurar outro lugar.
- Mas temos dinheiro à nossa espera. Faz vinte e sete dias que estamos na estrada. Disseram-nos que viéssemos para aqui. O senhor precisa de nos deixar entrar, sim!
Este último desapontamento foi demais para mim. Arrastámo-nos lentamente à volta dos muros da cidade, mas todos os portões estavam fechados. Que podia eu fazer? Para onde poderíamos ir?
Então, alguém condoeu-se de nós e disse-me que havia um templo budista em Fu-Feng, onde recolhiam crianças e cuidavam delas. Distava apenas um dia de viagem de comboio, e era um dos orfanatos da Sra. Chiang.
Nessa altura, eu estava doente demais para me lembrar do que aconteceu então. Devemos ter tomado o comboio, pois quando chegámos ao orfanato, havia cama e comida à nossa espera. Finalmente, as minhas crianças estavam a salvo! O meu trabalho estava terminado.
Na manhã seguinte, reuni-as e disse-lhes: "Vamos agradecer a Deus o Seu amor para connosco." Recitámos "0 Senhor é o meu pastor" juntos, e despedi-me delas.
O pessoal do orfanato implorou-me que ficasse e descansasse, mas na minha mente reinava o tumulto. Não conseguia descansar; precisava de continuar. Havia tanto para ser feito! "Deus cuidará de mim", eu ficava a repetir, e saí a pregar nos vilarejos.
Não me lembro do que aconteceu depois até me encontrar num hospital em Siã. Aos poucos, fui descobrindo o que sucedera.
Eu tentara pregar num vilarejo, mas perdera os sentidos. Ninguém sabia quem eu era, e um menino foi em busca do missionário norte-americano que arranjou um carro de bois para me levar à casa da missão. Em dois dias, chegou um médico do hospital de Siã que meneou a cabeça ao ver o estado em que me encontrava.
- Há pouquíssima esperança; ela está com pneumonia e tifo. Vocês sabem quem é ela?
- Não temos a menor ideia. Ela não disse uma palavra sequer desde que a trouxemos para cá.
- Se pudéssemos levá-la para o hospital, haveria uma possibilidade de salvá-la. É uma viagem longa, mas se conseguíssemos acrescentar um vagão de transporte de gado ao comboio da meia-noite, poderíamos levá-la assim como está, nesta cama.
Fui levada naquele vagão de gado e mais tarde fiquei a saber que amigos bondosos e desconhecidos fizeram a viagem de joelhos ao redor da cama mantendo-a firme durante a jornada. Eles mal ousavam esperar que eu chegasse com vida a Siã.
De repente, para surpresa deles, comecei a cantar um hino; depois orei e preguei um sermão sobre o filho pródigo. Eles não podiam compreender tudo o que eu dizia, pois o dialecto que eu falava era do norte, mas ainda assim acreditavam que eu fosse chinesa.
No hospital, travou-se uma batalha pela minha vida.
- Ela devia estar morta há muito tempo - disse o médico. - Ela tem malária, tifo, pneumonia, subnutrição, exaustão total e provavelmente diversas outras desordens menores.
Eu estava doente demais para falar, e, por mais de um mês, estive prostrada naquele hospital, mal tomando consciência do que me cercava. Então, como que por milagre, o Sr. Lu de Yangcheng, chegou a Siã. Ele fora posto em liberdade e saíra prontamente em busca do outro grupo de crianças e de mim.
O pastor chinês levou o Sr. Lu para me visitar, e ele regozijou-se muito ao descobrir que eu ainda estava viva.
- Ela veio de Yangcheng, no norte da China - disse ele aos médicos e às enfermeiras.
- Mas então o que está a fazer aqui em Siã a centenas de quilómetros?
- Ela veio trazer para a liberdade crianças que estavam na região ocupada pelos japoneses.
- Qual é o nome dela?
- Só sei o nome chinês, Ai-weh-deh, mas um menino que ela trouxe de Yangcheng tem um livro que pertencia a ela. É um livro em inglês e tem alguma coisa escrita nele.
Acabaram encontrando o livro, e na contracapa estava escrito em inglês: "Para Gladys, da tia Bessie".
Eles olharam-me estarrecidos. Seria possível que eu não fosse chinesa?!
Adaptado do livro APENAS UMA PEQUENA MULHER - Biografia de Gladys Aylward com Christine Hunter