OS MILHÕES DE CHINESES (Início do 1º Capítulo)
A maior ambição da minha vida era trabalhar no palco. Embora tivesse pouquíssima formação eu sabia falar e gostava muito de representar.
Cresci num lar cristão e frequentei a igreja e a escola dominical quando criança, mas, ao ir ficando mais velha, tornei-me impaciente com tudo o que dissesse respeito à religião.
Naquela época, a maioria das moças das classes trabalhadoras empregavam-se como 'domésticas', por haver poucas oportunidades de outro tipo de trabalho para elas. Assim, tornei-me uma empregada, mas, de noite, fazia um curso de artes dramáticas pois estava decidida a economizar e, por bem ou por mal, chegar até à 'ribalta'.
Certa noite, porém, por motivo que jamais consegui explicar, fui a uma reunião religiosa. Ali, pela primeira vez, percebi que Deus tinha direito à minha vida, e aceitei a Jesus Cristo como Salvador. Tornei-me membro da Campanha Vida Jovem, e, numa revista dessa entidade, li um artigo sobre a China que me impressionou tremendamente. Saber que milhões de chineses nunca tinham ouvido falar de Jesus Cristo foi para mim uma descoberta assombrosa, e achei que certamente tínhamos a obrigação de fazer algo a esse respeito.
Primeiro, fui procurar os meus amigos cristãos e falar com eles sobre o assunto, mas ninguém pareceu demonstrar muito interesse. Depois tentei falar com o meu irmão. Tinha a certeza de que, se eu o ajudasse, ele iria para a China com prazer!
- Eu não! - disse ele, sem hesitar. - Isso é serviço para solteironas. Por que não vai você?
Serviço para solteironas, essa é boa! pensei com raiva. Mas a estocada tinha atingido o lugar certo. Por que deveria tentar empurrar outras pessoas para a China? Por que não ir eu mesma?
Comecei a pesquisar como poderia preparar-me para ir para um país a milhares de quilómetros de distância, do qual quase nada sabia, a não ser que precisava de gente que falasse do amor de Deus. Disseram-me que eu devia apresentar-me a uma certa sociedade missionária, e acabei frequentando a Escola dessa sociedade por três meses.
No fim desse período, a comissão chegou à conclusão de que as minhas qualificações eram muito escassas, a minha instrução muito limitada. A língua chinesa, segundo eles, seria difícil demais para eu aprender.
Saí da entrevista em silêncio, todos os meus planos em ruínas. Revendo agora aquela cena, não posso culpá-los. Sei, melhor do que ninguém, quão idiota devo ter parecido. O ter aprendido não só a falar, mas também a ler e a escrever o chinês como uma pessoa nativa, em anos posteriores, é para mim um dos grandes milagres de Deus.
...
O Sr. Xan (14º capítulo)
Após deixar o mosteiro, não tive outro recurso a não ser voltar. O Dr. Huang disse que a viagem levava 5 dias. Já fazia 17 que partíramos, e ele tinha esposa e filhos em casa. Eu não podia continuar sozinha por bandas tão inóspitas e desabitadas. Assim, voltámos a Tsin Tsui, dando testemunho a todos os que encontrávamos pela estrada. De Tsin Tsui, fui a Fenghsien para contar aos estudantes a forma maravilhosa mediante a qual Deus tinha respondido às suas orações.
Algum tempo depois, vi-me obrigada a ir a uma certa cidade totalmente desconhecida. Tudo o que eu possuía era um vestido esfarrapado que me tinham dado, e sentia-me absolutamente desapontada e perplexa. Por que Deus me enviara a esta cidade estranha, sem dinheiro algum? Era uma cidade enorme, cheia de estudantes. O que havia ali para mim?
Fui recebida por um médico chinês e sua esposa. Eles trataram-me com muita bondade. Um dia, sentada numa poltrona da casa deles, percebi que dois homens atrás de mim falavam de um certo lugar na cidade onde havia gente que jamais ouvira falar de Jesus Cristo. Esquecendo-me completamente das boas maneiras, interrompi-os abruptamente:
- Senhores, por certo estão enganados. Há igrejas por toda a cidade; há reuniões por toda a parte; há centenas de cristãos.
- Senhora, deve ser de fora, não?
- Faz dois dias que cheguei.
- Estávamos a falar da cadeia.
- Existe uma cadeia aqui?
- Ora, temos aqui a segunda maior prisão da China e ninguém jamais a visitou para falar àqueles pobres desgraçados de Jesus Cristo.
Conversei mais um pouco com eles, mas não fiquei particularmente perturbada. Afinal de contas, o trabalho das prisões nada tinha a ver comigo. Eu sempre pregara nos vilarejos e cidadezinhas - esse era o meu trabalho.
Mas não consegui ficar em paz. Deus me dizia, de forma muito clara, que, gostasse ou não, eu era responsável por aqueles presos. Cristo morrera pela alma de cada um deles, e eu viera à China para proclamar esse evangelho aonde quer que Deus me conduzisse.
No final da semana, tive uma entrevista com o governador. A sua maneira foi extremamente bem-educada, mas a sua atitude tão condescendente deixou-me muito nervosa.
- Em que posso servi-la, senhora? - perguntou, olhando friamente para mim.
- O senhor permitiria que eu fosse à prisão para falar de Jesus Cristo aos prisioneiros?
- A senhora deseja entrar na prisão?
- Sim.
- E o que pretende fazer se eu lhe permitir falar aos homens?
- Pretendo mudar a prisão!
- Senhora, já vai para 5 anos que sou governador, e não consegui a mínima mudança.
- Mas eu tenho a Jesus Cristo. É Ele quem pode produzir a mudança.
Deram-me um passe e fui escoltada até ao grande pátio interior. Os guardas fizeram entrar fileiras e mais fileiras de homens sujos, degradados, cujos rostos reflectiam crueldade. Uns gritavam, outros riam e outros ainda gracejavam.
Eu era tão baixa que precisei de subir num pequeno monte de terra. Falei-lhes, contei-lhes histórias. Dia após dia eu me colocava em pé perante os presos, com o coração batendo violentamente, mas a consciência da necessidade terrível e desesperada daqueles homens incitava-me a prosseguir.
Orava por eles durante horas, noite após noite. Frequentemente, quando devia estar a dormir, saía pelas encostas das montanhas acompanhada de um cristão leproso. Andávamos e orávamos, não tendo coragem de parar porque ele era 'impuro' de corpo, mas tão verdadeiramente puro de coração.
Além de ir à prisão, eu visitava o leprosário, e acredito que foram as orações dos leprosos crentes que me deram forças naquelas primeiras terríveis semanas.
Afinal, um prisioneiro converteu-se, depois outro, até que cinco vinham tomar os seus lugares ao meu lado e testemunhar da mudança que Deus tinha operado nas suas vidas. Essas conversões foram algo maravilhoso, mas a prisão certamente não tinha sido mudada, e milhares ainda zombavam da Palavra de Deus.
Certo dia, eu terminara de falar e ia sair magoada, cansada e desesperada. Queria ver-me longe daquele incrível mau cheiro de humanidade imunda, quando o portão se abriu e quatro homens foram arrastados para dentro. Estavam acorrentados uns aos outros e foram atirados com violência para o chão. Os guardas, com as armas em punho, se colocaram em cima deles.
O meu primeiro pensamento foi: Saia daqui o mais rápido que puder.
Apressava-me para a saída quando ouvi alguém dizer: "Gladys Aylward, morri por eles tanto quanto por você."
Fui até junto a um dos guardas e perguntei: "Posso falar com esses homens?"
Brusca e rudemente, ele recusou o meu pedido.
Andei devagar em volta do pátio, orando, e pedi novamente.
Desta vez, a resposta foi um palavrão, e um grito:
"Ponham essa peste de mulher lá fora!" O guarda do portão levou-me para fora.
Alguns dias mais tarde fiquei a saber que os quatro presos eram assassinos. Três já estavam mortos; apenas um, o Sr. Xan, ainda vivia. O Sr. Xan era jovem, de boa aparência, não arrogante, mas percebia nele um quê de pura maldade. Ele olhou para mim de uma forma horrivelmente ofensiva, e disse coisas que não posso repetir. Senti intensa repulsa, mas orei por ele e levei os meus amigos a orar também. Um certo dia, tentando falar com ele, o Sr Xan soltou uma praga, e, voltando-se, cuspiu-me no rosto. Cheguei quase a odiá-lo.
Passaram-se os meses, e eu consegui a ajuda de outras pessoas. Alguns prisioneiros se converteram e tínhamos um grupo de quarenta, preparando-se para o baptismo. Mas, ainda assim, a bênção não tinha varrido a prisão mudando-a de forma visível.
Do leprosário, porém, subiam orações incessantes.
Um certo dia, ao terminar de falar, os homens dispuseram-se em filas para voltar às celas. Tinham sempre de ir em marcha acelerada, e não podiam falar enquanto se moviam.
Em pé, fiquei a vê-los passar com o meu coração sentindo compaixão deles. A essa altura, já conhecia a maioria deles. Sabia por que estavam na cadeia e, embora não tivesse permissão para falar, eu podia sorrir e acenar com a cabeça.
No fim da fila, vi o homem que eu tanto detestava, o Sr. Xan, o homem que parecia ter o coração mais duro do que os próprios muros da prisão.
Com muita clareza, disse-me uma voz:
- Fale com aquele homem!
- Oh, não - repliquei. - Ele detesta-me! Chegou a cuspir em mim. Além disso, a lei declara que não devo falar com ele enquanto a fila está em movimento.
- Mesmo assim, você precisa de falar com ele.
O que fazer? Comecei a suar frio. Ele estava quase a chegar aonde eu me encontrava. Na minha agitação, inclinei-me para a frente e encostei a mão no ombro dele, enquanto dizia apressadamente:
"Oh, Sr. Xan, o senhor deve ser muito infeliz!"
Que coisa mais tola para dizer, pensei imediatamente.
Com uma horrível maldição, ele se livrou da minha mão.
- O que é que a senhora tem que ver com isso?
- É porque eu sou tão feliz!
- É claro que é. A porta não se abre para si todas as vezes que deseja sair?
- Ah, não é por isso, não. É porque Jesus Cristo morreu por mim.
O Sr. Xan continuou a marcha. Caindo em mim, percebi o terrível deslize que cometera. Um dos princípios chineses mais importantes é que mulher alguma jamais deve tocar num homem em público.
Deixei a prisão deprimida e envergonhada. Diante daqueles homens, eu tinha-me maculado. E com um homem como ele!
O Sr. Xan seguiu a fila e sentou-se numa pedra num pátio interior com a cabeça entre as mãos. Alguns momentos mais tarde, Dhu Cor, o primeiro preso convertido, viu-o ali sentado.
- Está a sentir-se mal? - perguntou, olhando-o atentamente.
- Você viu o que ela fez?
- O quê?
- Ela tocou-me!
- Não. É mentira!
- Não é mentira. Ela pôs a mão no meu ombro.
- Não posso acreditar.
Um outro preso, que estivera a ouvir, entrou na conversa:
- O que ele está a dizer é verdade. Ela realmente tocou nele.
- Ela me tocou como se gostasse de mim! - disse o Sr. Xan ofegante.
- Talvez ela realmente o ame - respondeu Dhu Cor.
- O quê, uma mulher pura como ela amar-me, um assassino, que a amaldiçoou e cuspiu nela?!
- Sim, creio que ela pode amar você porque acredita que Deus o ama, não importa o que tenha feito.
O Sr. Xan converteu-se, não como resultado de um grande sermão, mas por que, muitos anos atrás em Londres, Deus tomou uma moça e pediu-lhe que lhe dedicasse as mãos, os pés - o corpo inteiro - para serem usados no Seu trabalho. E, naquele dia, Deus tocou o Sr. Xan através daquele pobre instrumento humano.
A conversão do Sr. Xan deu início a um verdadeiro reavivamento naquela prisão. Os homens passavam horas ouvindo a Palavra de Deus; passavam horas de joelhos; e foram precisos três dias para baptizar a todos.
Testemunhos, especialmente o do Sr. Xan, apareceram no boletim da prisão. Não se passou muito tempo para eu começar a receber convites de outras prisões.
O próprio governador, convencido pela transformação dos criminosos mais endurecidos, converteu-se e proclamou em termos bem claros que o que ele fora incapaz da fazer em cinco anos, o poder do glorioso evangelho da salvação conseguiu em um.
A maior ambição da minha vida era trabalhar no palco. Embora tivesse pouquíssima formação eu sabia falar e gostava muito de representar.
Cresci num lar cristão e frequentei a igreja e a escola dominical quando criança, mas, ao ir ficando mais velha, tornei-me impaciente com tudo o que dissesse respeito à religião.
Naquela época, a maioria das moças das classes trabalhadoras empregavam-se como 'domésticas', por haver poucas oportunidades de outro tipo de trabalho para elas. Assim, tornei-me uma empregada, mas, de noite, fazia um curso de artes dramáticas pois estava decidida a economizar e, por bem ou por mal, chegar até à 'ribalta'.
Certa noite, porém, por motivo que jamais consegui explicar, fui a uma reunião religiosa. Ali, pela primeira vez, percebi que Deus tinha direito à minha vida, e aceitei a Jesus Cristo como Salvador. Tornei-me membro da Campanha Vida Jovem, e, numa revista dessa entidade, li um artigo sobre a China que me impressionou tremendamente. Saber que milhões de chineses nunca tinham ouvido falar de Jesus Cristo foi para mim uma descoberta assombrosa, e achei que certamente tínhamos a obrigação de fazer algo a esse respeito.
Primeiro, fui procurar os meus amigos cristãos e falar com eles sobre o assunto, mas ninguém pareceu demonstrar muito interesse. Depois tentei falar com o meu irmão. Tinha a certeza de que, se eu o ajudasse, ele iria para a China com prazer!
- Eu não! - disse ele, sem hesitar. - Isso é serviço para solteironas. Por que não vai você?
Serviço para solteironas, essa é boa! pensei com raiva. Mas a estocada tinha atingido o lugar certo. Por que deveria tentar empurrar outras pessoas para a China? Por que não ir eu mesma?
Comecei a pesquisar como poderia preparar-me para ir para um país a milhares de quilómetros de distância, do qual quase nada sabia, a não ser que precisava de gente que falasse do amor de Deus. Disseram-me que eu devia apresentar-me a uma certa sociedade missionária, e acabei frequentando a Escola dessa sociedade por três meses.
No fim desse período, a comissão chegou à conclusão de que as minhas qualificações eram muito escassas, a minha instrução muito limitada. A língua chinesa, segundo eles, seria difícil demais para eu aprender.
Saí da entrevista em silêncio, todos os meus planos em ruínas. Revendo agora aquela cena, não posso culpá-los. Sei, melhor do que ninguém, quão idiota devo ter parecido. O ter aprendido não só a falar, mas também a ler e a escrever o chinês como uma pessoa nativa, em anos posteriores, é para mim um dos grandes milagres de Deus.
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O Sr. Xan (14º capítulo)
Após deixar o mosteiro, não tive outro recurso a não ser voltar. O Dr. Huang disse que a viagem levava 5 dias. Já fazia 17 que partíramos, e ele tinha esposa e filhos em casa. Eu não podia continuar sozinha por bandas tão inóspitas e desabitadas. Assim, voltámos a Tsin Tsui, dando testemunho a todos os que encontrávamos pela estrada. De Tsin Tsui, fui a Fenghsien para contar aos estudantes a forma maravilhosa mediante a qual Deus tinha respondido às suas orações.
Algum tempo depois, vi-me obrigada a ir a uma certa cidade totalmente desconhecida. Tudo o que eu possuía era um vestido esfarrapado que me tinham dado, e sentia-me absolutamente desapontada e perplexa. Por que Deus me enviara a esta cidade estranha, sem dinheiro algum? Era uma cidade enorme, cheia de estudantes. O que havia ali para mim?
Fui recebida por um médico chinês e sua esposa. Eles trataram-me com muita bondade. Um dia, sentada numa poltrona da casa deles, percebi que dois homens atrás de mim falavam de um certo lugar na cidade onde havia gente que jamais ouvira falar de Jesus Cristo. Esquecendo-me completamente das boas maneiras, interrompi-os abruptamente:
- Senhores, por certo estão enganados. Há igrejas por toda a cidade; há reuniões por toda a parte; há centenas de cristãos.
- Senhora, deve ser de fora, não?
- Faz dois dias que cheguei.
- Estávamos a falar da cadeia.
- Existe uma cadeia aqui?
- Ora, temos aqui a segunda maior prisão da China e ninguém jamais a visitou para falar àqueles pobres desgraçados de Jesus Cristo.
Conversei mais um pouco com eles, mas não fiquei particularmente perturbada. Afinal de contas, o trabalho das prisões nada tinha a ver comigo. Eu sempre pregara nos vilarejos e cidadezinhas - esse era o meu trabalho.
Mas não consegui ficar em paz. Deus me dizia, de forma muito clara, que, gostasse ou não, eu era responsável por aqueles presos. Cristo morrera pela alma de cada um deles, e eu viera à China para proclamar esse evangelho aonde quer que Deus me conduzisse.
No final da semana, tive uma entrevista com o governador. A sua maneira foi extremamente bem-educada, mas a sua atitude tão condescendente deixou-me muito nervosa.
- Em que posso servi-la, senhora? - perguntou, olhando friamente para mim.
- O senhor permitiria que eu fosse à prisão para falar de Jesus Cristo aos prisioneiros?
- A senhora deseja entrar na prisão?
- Sim.
- E o que pretende fazer se eu lhe permitir falar aos homens?
- Pretendo mudar a prisão!
- Senhora, já vai para 5 anos que sou governador, e não consegui a mínima mudança.
- Mas eu tenho a Jesus Cristo. É Ele quem pode produzir a mudança.
Deram-me um passe e fui escoltada até ao grande pátio interior. Os guardas fizeram entrar fileiras e mais fileiras de homens sujos, degradados, cujos rostos reflectiam crueldade. Uns gritavam, outros riam e outros ainda gracejavam.
Eu era tão baixa que precisei de subir num pequeno monte de terra. Falei-lhes, contei-lhes histórias. Dia após dia eu me colocava em pé perante os presos, com o coração batendo violentamente, mas a consciência da necessidade terrível e desesperada daqueles homens incitava-me a prosseguir.
Orava por eles durante horas, noite após noite. Frequentemente, quando devia estar a dormir, saía pelas encostas das montanhas acompanhada de um cristão leproso. Andávamos e orávamos, não tendo coragem de parar porque ele era 'impuro' de corpo, mas tão verdadeiramente puro de coração.
Além de ir à prisão, eu visitava o leprosário, e acredito que foram as orações dos leprosos crentes que me deram forças naquelas primeiras terríveis semanas.
Afinal, um prisioneiro converteu-se, depois outro, até que cinco vinham tomar os seus lugares ao meu lado e testemunhar da mudança que Deus tinha operado nas suas vidas. Essas conversões foram algo maravilhoso, mas a prisão certamente não tinha sido mudada, e milhares ainda zombavam da Palavra de Deus.
Certo dia, eu terminara de falar e ia sair magoada, cansada e desesperada. Queria ver-me longe daquele incrível mau cheiro de humanidade imunda, quando o portão se abriu e quatro homens foram arrastados para dentro. Estavam acorrentados uns aos outros e foram atirados com violência para o chão. Os guardas, com as armas em punho, se colocaram em cima deles.
O meu primeiro pensamento foi: Saia daqui o mais rápido que puder.
Apressava-me para a saída quando ouvi alguém dizer: "Gladys Aylward, morri por eles tanto quanto por você."
Fui até junto a um dos guardas e perguntei: "Posso falar com esses homens?"
Brusca e rudemente, ele recusou o meu pedido.
Andei devagar em volta do pátio, orando, e pedi novamente.
Desta vez, a resposta foi um palavrão, e um grito:
"Ponham essa peste de mulher lá fora!" O guarda do portão levou-me para fora.
Alguns dias mais tarde fiquei a saber que os quatro presos eram assassinos. Três já estavam mortos; apenas um, o Sr. Xan, ainda vivia. O Sr. Xan era jovem, de boa aparência, não arrogante, mas percebia nele um quê de pura maldade. Ele olhou para mim de uma forma horrivelmente ofensiva, e disse coisas que não posso repetir. Senti intensa repulsa, mas orei por ele e levei os meus amigos a orar também. Um certo dia, tentando falar com ele, o Sr Xan soltou uma praga, e, voltando-se, cuspiu-me no rosto. Cheguei quase a odiá-lo.
Passaram-se os meses, e eu consegui a ajuda de outras pessoas. Alguns prisioneiros se converteram e tínhamos um grupo de quarenta, preparando-se para o baptismo. Mas, ainda assim, a bênção não tinha varrido a prisão mudando-a de forma visível.
Do leprosário, porém, subiam orações incessantes.
Um certo dia, ao terminar de falar, os homens dispuseram-se em filas para voltar às celas. Tinham sempre de ir em marcha acelerada, e não podiam falar enquanto se moviam.
Em pé, fiquei a vê-los passar com o meu coração sentindo compaixão deles. A essa altura, já conhecia a maioria deles. Sabia por que estavam na cadeia e, embora não tivesse permissão para falar, eu podia sorrir e acenar com a cabeça.
No fim da fila, vi o homem que eu tanto detestava, o Sr. Xan, o homem que parecia ter o coração mais duro do que os próprios muros da prisão.
Com muita clareza, disse-me uma voz:
- Fale com aquele homem!
- Oh, não - repliquei. - Ele detesta-me! Chegou a cuspir em mim. Além disso, a lei declara que não devo falar com ele enquanto a fila está em movimento.
- Mesmo assim, você precisa de falar com ele.
O que fazer? Comecei a suar frio. Ele estava quase a chegar aonde eu me encontrava. Na minha agitação, inclinei-me para a frente e encostei a mão no ombro dele, enquanto dizia apressadamente:
"Oh, Sr. Xan, o senhor deve ser muito infeliz!"
Que coisa mais tola para dizer, pensei imediatamente.
Com uma horrível maldição, ele se livrou da minha mão.
- O que é que a senhora tem que ver com isso?
- É porque eu sou tão feliz!
- É claro que é. A porta não se abre para si todas as vezes que deseja sair?
- Ah, não é por isso, não. É porque Jesus Cristo morreu por mim.
O Sr. Xan continuou a marcha. Caindo em mim, percebi o terrível deslize que cometera. Um dos princípios chineses mais importantes é que mulher alguma jamais deve tocar num homem em público.
Deixei a prisão deprimida e envergonhada. Diante daqueles homens, eu tinha-me maculado. E com um homem como ele!
O Sr. Xan seguiu a fila e sentou-se numa pedra num pátio interior com a cabeça entre as mãos. Alguns momentos mais tarde, Dhu Cor, o primeiro preso convertido, viu-o ali sentado.
- Está a sentir-se mal? - perguntou, olhando-o atentamente.
- Você viu o que ela fez?
- O quê?
- Ela tocou-me!
- Não. É mentira!
- Não é mentira. Ela pôs a mão no meu ombro.
- Não posso acreditar.
Um outro preso, que estivera a ouvir, entrou na conversa:
- O que ele está a dizer é verdade. Ela realmente tocou nele.
- Ela me tocou como se gostasse de mim! - disse o Sr. Xan ofegante.
- Talvez ela realmente o ame - respondeu Dhu Cor.
- O quê, uma mulher pura como ela amar-me, um assassino, que a amaldiçoou e cuspiu nela?!
- Sim, creio que ela pode amar você porque acredita que Deus o ama, não importa o que tenha feito.
O Sr. Xan converteu-se, não como resultado de um grande sermão, mas por que, muitos anos atrás em Londres, Deus tomou uma moça e pediu-lhe que lhe dedicasse as mãos, os pés - o corpo inteiro - para serem usados no Seu trabalho. E, naquele dia, Deus tocou o Sr. Xan através daquele pobre instrumento humano.
A conversão do Sr. Xan deu início a um verdadeiro reavivamento naquela prisão. Os homens passavam horas ouvindo a Palavra de Deus; passavam horas de joelhos; e foram precisos três dias para baptizar a todos.
Testemunhos, especialmente o do Sr. Xan, apareceram no boletim da prisão. Não se passou muito tempo para eu começar a receber convites de outras prisões.
O próprio governador, convencido pela transformação dos criminosos mais endurecidos, converteu-se e proclamou em termos bem claros que o que ele fora incapaz da fazer em cinco anos, o poder do glorioso evangelho da salvação conseguiu em um.
Extractos do livro Apenas Uma Pequena Mulher, biografia de Gladys Aylward, Editora Vida, adaptado para o cinema sob o título - A Pousada da Sexta Felicidade - "Um filme baseado na história verdadeira de Gladys Aylward, cuja paixão irredutível por fazer o bem a levou a percorrer o mundo... Drama baseado na verdadeira história de Gladys Aylward, mulher que dedicou a sua vida a fazer o bem pelos outros.
A inglesa Gladys (Ingrid Bergman) tinha o sonho de se tornar missionária. Trabalhava como empregada quando viajou para a China e abriu uma pensão. Levou algum tempo até vencer a hostilidade dos habitantes locais, chegando a ganhar o amor de um coronel (Curt Jurgens) e a converter um poderoso mandarim (Robert Donat) ao cristianismo. O seu grande feito acontece quando, durante a invasão japonesa da China, ela consegue levar uma centena de crianças sem lar para um local seguro atravessando território dominado pelo inimigo.
Adaptado do best-seller The Small Woman, de Alan Burgess, foi indicado para o Óscar de melhor realizador.
(A minha opinião é que o livro é melhor do que o filme... E.E.)